A Inteligência Artificial como Força Produtiva: Pela Apropriação Social contra a Barbárie Capitalista

 1. Introdução

A Inteligência Artificial (IA) emerge no século XXI como uma força produtiva de potencial revolucionário, comparável à introdução da maquinaria na grande indústria. Contudo, as forças produtivas não se desenvolvem num vácuo social; elas estão inextricavelmente ligadas às relações de produção vigentes. No modo de produção capitalista, a tecnologia não é, e nunca foi, uma ferramenta neutra para o progresso humano. Em vez disso, é uma arma nas mãos da classe dominante. A IA, sob o controle do capital, não escapa a essa lei fundamental: seu propósito primordial não é emancipar a humanidade, mas intensificar a acumulação de capital, mesmo que isso signifique aprofundar a barbárie social (Tomašev et al., 2020; Floridi et al., 2020).

Este texto recusa-se a participar do coro liberal que busca "humanizar" ou "regular" a IA através de comitês de "ética" ou modelos de "governança". Tais propostas são uma cortina de fumaça ideológica que obscurece a questão central: a propriedade privada dos meios de produção tecnológicos. A tese aqui defendida é que a IA representa um campo de batalha crucial na luta de classes. A tarefa histórica do proletariado/precariado não é negociar os termos de sua submissão à tecnologia do capital, mas lutar pela sua expropriação. Apenas através da apropriação social da IA será possível libertar seu potencial das amarras das relações de produção capitalistas e colocá-la a serviço da construção de uma sociedade baseada nas necessidades humanas, e não no lucro (Barreto & Ávila, 2023).

2. A Lógica do Capital e a Barbárie Tecnológica

Analisar a aplicação da IA sob o capitalismo é testemunhar a lógica do capital levada a novas e mais brutais consequências. Cada avanço tecnológico é imediatamente convertido em um meio para aumentar a taxa de exploração. No mundo do trabalho, a IA é a arma perfeita para o capitalista: ela permite a automação de tarefas, desvaloriza a força de trabalho humana e expande massivamente o exército industrial de reserva, disciplinando os trabalhadores que ainda permanecem empregados (Guerra et al., 2024). A promessa de "requalificação" é uma farsa cínica que joga a responsabilidade da crise sistêmica nos ombros do trabalhador individual. O resultado é a intensificação da alienação: o trabalhador não apenas é separado do produto do seu trabalho, mas sua própria atividade cognitiva é fragmentada, mercantilizada e, por fim, substituída pelo algoritmo (Morandín-Ahuerma et al., 2024; Façanha et al., 2024).

Essa lógica de mercantilização se estende a todas as esferas da vida. Na saúde, o corpo humano torna-se a última fronteira da extração de dados. A promessa de diagnósticos precisos (Soares et al., 2023) mascara a transformação da saúde em uma mercadoria de luxo, enquanto os dados de populações inteiras são extraídos para gerar lucro para seguradoras e farmacêuticas, aprofundando a comoditização da vida (Elias et al., 2023). Na educação, a "personalização do ensino" torna-se um eufemismo para a produção de subjetividades dóceis e adaptadas às necessidades do mercado de trabalho, ao mesmo tempo que se estabelece um regime de vigilância e controle de dados sem precedentes sobre a juventude (Barbosa, 2023; Moreira & Ribeiro, 2023).

A superestrutura ideológica e repressiva do Estado burguês também é fortalecida. Os sistemas de "justiça" algorítmica, treinados com dados que refletem o racismo e a desigualdade estrutural, tornam-se ferramentas de controle social para reprimir as classes perigosas com uma eficiência asséptica e uma aparência de objetividade inquestionável (Sales et al., 2021; Rossetti & Silva, 2024). A indústria cultural, por sua vez, usa a IA para gerar um fluxo incessante de conteúdo que promove a hegemonia ideológica das elites, o consumismo e a passividade política, sufocando o desenvolvimento de uma consciência de classe revolucionária (Silva et al., 2023; Esposito, 2022).


3. Da Gestão da Crise à Revolução: A Necessidade da Apropriação Social

Diante deste cenário, as propostas de "governança" são, na melhor das hipóteses, ingênuas e, na pior, uma armadilha reacionária. Tentar "regular" a IA para que ela seja "justa" dentro do capitalismo é como tentar regular a exploração para que ela seja "ética". É uma contradição em termos. A "governança multissetorial" (Moon, 2023), que coloca corporações, Estados e "sociedade civil" na mesma mesa, serve apenas para legitimar o poder do capital e cooptar qualquer oposição, neutralizando as demandas da classe trabalhadora sob o pretexto de um "diálogo" que nunca questiona a questão fundamental: a propriedade.

A única resposta à altura do desafio é a apropriação social da IA. Isso implica um programa político claro e intransigente:

  1. Expropriação da Elite Tecnológica: A infraestrutura física e lógica da IA — os data centers, as plataformas, os algoritmos proprietários, os vastos conjuntos de dados — deve ser expropriada e transformada em propriedade social, controlada democraticamente pelos trabalhadores e pela população em geral.

  2. Planejamento Democrático Centralizado: Em vez de ser guiada pela anarquia do mercado e pela busca por lucro, a IA deve se tornar a ferramenta principal para o planejamento democrático da economia. Sob o controle dos trabalhadores, ela pode ser usada para mapear as necessidades sociais, otimizar a alocação de recursos, eliminar o desperdício, coordenar a produção em escala global e planejar a transição para uma economia ecologicamente sustentável.

  3. Abolição do Trabalho Alienado: Com a IA socializada, o objetivo não seria mais substituir trabalhadores para aumentar o lucro, mas abolir o trabalho compulsório e penoso. A automação seria usada para reduzir drasticamente a jornada de trabalho para todos, liberando o tempo humano para a ciência, a arte, a cultura, o lazer e a participação política, permitindo o "livre desenvolvimento de cada um como condição para o livre desenvolvimento de todos".

4. Conclusão: Socialismo ou Barbárie Tecnológica

A Inteligência Artificial, enquanto força produtiva, coloca a humanidade numa encruzilhada histórica. A sua privatização e desenvolvimento sob o jugo do capital aponta para um futuro distópico de controle privado total, desemprego em massa e uma desigualdade abissal — uma nova forma de barbárie tecnológica. A tentativa de mitigar esses efeitos através de reformas e regulações está condenada ao fracasso, pois não ataca a raiz do problema: as relações de produção capitalistas.

A alternativa não é frear o desenvolvimento tecnológico, mas arrancá-lo das mãos da classe dominante. A luta pelo controle da Inteligência Artificial é a forma que a luta de classes assume no século XXI. A escolha que se apresenta não é entre uma IA "boa" e uma "má", mas entre a sua utilização para a perpetuação do capital ou para a construção do socialismo. A tarefa dos revolucionários é levar essa consciência à classe trabalhadora e organizar a luta pela apropriação social da tecnologia. A governança não trará o futuro que desejamos, apenas a expropriação.

Referências

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