A palavra "governança" tornou-se central no vocabulário político, administrativo e corporativo contemporâneo. Compreender seu significado, sua aplicação e, crucialmente, suas implicações ideológicas é fundamental para uma análise crítica da sociedade atual.
1. O Conceito de Governança e seu Uso Convencional
Em sua definição mais ampla, a governança refere-se aos processos, estruturas e relações através dos quais um grupo ou sociedade se organiza para tomar decisões e alcançar objetivos comuns. Ela vai além do conceito tradicional de "governo", que se foca no aparelho do Estado. A governança, por sua vez, abrange a interação entre uma gama diversificada de atores — ou stakeholders —, incluindo instituições governamentais, o setor privado e a sociedade civil (Freitas, 2023; Oliveira & Garcia, 2020).
No discurso convencional, o termo está associado a um ideal de boa gestão. Seus pilares seriam a eficiência, a transparência, a responsabilidade (accountability) e a participação. O objetivo declarado da governança é assegurar que as decisões sejam tomadas de forma mais legítima e eficaz, refletindo um movimento em direção ao que se considera uma administração adequada e moderna (Freitas, 2023).
Esse conceito é aplicado em múltiplos domínios:
Na saúde, a governança é entendida como a complexa interação entre hospitais, agências reguladoras, planos de saúde e pacientes para a prestação de serviços (Prado et al., 2020).
Na educação, manifesta-se em mecanismos de gestão universitária ou na implementação de currículos nacionais que envolvem diversos setores da sociedade (Silva et al., 2023; Freitas, 2023).
Na administração pública, busca-se uma "governança pública" que, em tese, superaria o modelo burocrático tradicional ao incluir cidadãos e empresas no processo decisório.
Nessa visão, a governança é apresentada como uma evolução técnica e democrática, uma solução para os complexos problemas da sociedade contemporânea.
2. A Crítica Marxista: Governança como Ferramenta da Hegemonia Burguesa
De um ponto de vista crítico e marxista, a governança não é uma técnica neutra, mas um conceito ideológico que surge e se consolida no seio do capitalismo tardio, especialmente em sua fase neoliberal. Sua função não é superar as contradições sociais, mas sim gerenciá-las de uma forma que preserve as relações de poder e a estrutura de classes existentes. A crítica se desdobra em três pontos fundamentais:
a) A Fachada de Participação e a Manutenção do Status Quo
A promessa de inclusão da governança é, em grande medida, uma ilusão. Embora se fale em "diálogo" e "participação", as estruturas de governança raramente alteram a distribuição de poder real. Como apontam Silva et al. (2023), ela pode proporcionar uma "fachada de participação", enquanto o que predomina é o "controle hegemônico" da elite.
Na prática, as decisões continuam a ser tomadas por um "círculo restrito de influenciadores" (Oliveira & Garcia, 2020), composto pela alta burocracia estatal e, principalmente, por grandes interesses corporativos. A "sociedade civil" convidada a participar é, muitas vezes, representada por ONGs e associações alinhadas aos interesses do capital, enquanto sindicatos de classe e movimentos sociais combativos são marginalizados. Assim, a governança torna-se uma ferramenta sofisticada para legitimar decisões que mantêm o status quo, e não para democratizá-las.
b) O Veículo da Mercantilização Neoliberal
A governança é o principal mecanismo através do qual a lógica do mercado é introduzida em esferas da vida que antes eram protegidas como direitos sociais. O foco obsessivo na "eficiência" não é neutro; é a eficiência do capital, que se traduz em corte de custos, privatização de serviços e competição.
Isso leva diretamente à mercantilização de serviços públicos (Oliveira & Garcia, 2020). A governança na saúde transforma hospitais em empresas que precisam ser lucrativas. Na educação, a "governança universitária" introduz lógicas corporativas que resultam na "mercantilização do conhecimento", transformando a educação superior em uma mercadoria e os estudantes em consumidores (Silva et al., 2023). A governança, portanto, não apenas falha em promover o bem público, como ativamente o subordina aos interesses privados.
c) Um Aparelho Ideológico para Gerenciar as Contradições do Capital
Em última análise, a governança funciona como um aparelho ideológico. Ela transforma problemas políticos e de classe em questões técnicas e administrativas. A luta por moradia, saúde ou educação deixa de ser uma luta por direitos e pela desmercantilização da vida e passa a ser um "desafio de governança" a ser resolvido com "boas práticas de gestão".
Ao fazer isso, ela oculta as "desigualdades sistêmicas" e as "práticas exploratórias" (Oliveira & Garcia, 2020) que estão na raiz dos problemas sociais. Ela quebra a solidariedade de classe ao transformar interesses coletivos em uma negociação de interesses individuais entre stakeholders.
Conclusão Crítica
Do ponto de vista marxista, a governança não é um avanço democrático. É uma tecnologia de poder do capitalismo neoliberal que visa gerenciar suas próprias crises sem nunca tocar na sua causa fundamental: a propriedade privada dos meios de produção e a exploração do trabalho. Ela é a resposta do capital à demanda por democracia: uma participação controlada, uma eficiência mercantil e uma estrutura que, sob o disfarce da colaboração, aprofunda a dominação de classe. A superação das limitações da governança não virá de sua "melhora" ou "reforma", mas de sua substituição por formas de poder popular e autogestão dos trabalhadores que rompam radicalmente com a lógica do Estado e do mercado.
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