O Capital em Crise: A Falsa Escolha entre a Ordem Multilateral e a Barbárie Nacionalista

A discussão contemporânea sobre a ordem mundial nos apresenta um falso dilema: de um lado, um multilateralismo globalista que aprofunda a desigualdade; de outro, um neonacionalismo bilateral que fomenta o conflito. Para uma análise crítica, contudo, essa não é uma escolha entre dois sistemas opostos, mas entre duas faces da mesma moeda: estratégias distintas para a gestão das contradições inerentes ao modo de produção capitalista. Ambas as vias servem, em última instância, à mesma classe dominante, e ambas nos conduzem a um aprofundamento da barbárie.

A fonte da desordem, da miséria crescente, da devastação ambiental e da guerra não reside em uma "má governança", mas na lógica implacável da acumulação de capital.

O Multilateralismo como Ferramenta do Capital Transnacional

A chamada "ordem multilateral" nunca teve como propósito a cooperação equitativa entre os povos. Ela foi, e continua sendo, o arcabouço institucional que permitiu a expansão e a hegemonia do capital transnacional após a Segunda Guerra Mundial. Organismos como o FMI, o Banco Mundial e a OMC não são árbitros neutros; são instrumentos de poder da burguesia dos países centrais, projetados para impor a disciplina neoliberal, quebrar barreiras protecionistas e abrir mercados globais à exploração.

O aumento da desigualdade e a concentração de riqueza não são "falhas" ou "efeitos colaterais" desse sistema. São o seu resultado direto e necessário. A globalização, sob essa arquitetura, otimizou a extração de mais-valia em escala planetária, transferindo valor do trabalho da periferia global para o capital concentrado no centro do sistema. O "fracasso" em conter a ganância corporativa é, na verdade, o sucesso em garantir a liberdade irrestrita para o capital explorar o trabalho e a natureza.


O Neonacionalismo: O Recurso da Burguesia em Tempos de Crise

A ascensão do neonacionalismo de figuras como Trump não representa uma ruptura com a lógica do capital, mas sim uma resposta a suas crises cíclicas. Quando a globalização exacerba as tensões sociais internas e intensifica a rivalidade inter-imperialista, uma facção da classe dominante recorre ao Estado-nação como seu principal instrumento de poder.

Essa estratégia utiliza a xenofobia, o protecionismo e o militarismo para dois fins principais: primeiro, desviar a raiva da classe trabalhadora, culpando o "outro" (o imigrante, a nação estrangeira) pelas mazelas causadas pela própria exploração capitalista. Segundo, disputar com outras burguesias nacionais uma fatia maior da riqueza global num cenário de crescimento estagnado. O bilateralismo de Trump não era uma política anti-sistema; era a expressão de uma competição mais agressiva entre diferentes blocos de capital, utilizando o poder do Estado para garantir vantagens.

O Estado, o Capital e a Superação Necessária

Seja operando sob a bandeira do livre-comércio global ou do protecionismo nacional, o Estado capitalista moderno cumpre sua função primordial: garantir as condições para a acumulação de capital. É por isso que nenhum desses modelos pode resolver as crises que enfrentamos. A crise ambiental, por exemplo, é a contradição final do capitalismo: a necessidade de crescimento infinito em um planeta finito. A lógica do lucro sempre se sobreporá à sustentabilidade, seja em acordos multilaterais vazios ou em uma corrida nacionalista para o fundo do poço ecológico.

A superação do caos gerado pelos Estados nacionais e, fundamentalmente, pelas empresas capitalistas, é a única saída lógica. O caminho, contudo, é incerto. A ideia de uma transição conduzida por um "Estado global" é, no mínimo, ambígua. Sem uma revolução na base da estrutura de poder, um Estado global poderia facilmente se tornar o leviatã definitivo da ditadura do capital, uma burocracia planetária a serviço da burguesia unificada. Nada garante que tal entidade servisse aos interesses da humanidade.

A verdadeira utopia, ainda que distante, reside em um socialismo democrático e tecnológico: um sistema onde os vastos recursos produtivos e tecnológicos, hoje controlados por uma minoria para fins de lucro, sejam postos sob o controle democrático dos próprios produtores e da sociedade como um todo. Apenas a planificação racional e democrática da economia para atender às necessidades humanas — e não à necessidade de acumulação — pode nos tirar do ciclo de crises, guerras e destruição.

O debate entre multilateralismo e nacionalismo é uma distração. A tarefa histórica que se coloca não é a de reformar a gestão do capitalismo, mas a de construir a força política para superá-lo.


Referências:

  • Acemoğlu, D. and Robinson, J. (2015). The rise and decline of general laws of capitalism. Journal of Economic Perspectives, 29(1), 3-28. https://doi.org/10.1257/jep.29.1.3
  • Arestis, P., BárcenaMartín, E., & PérezMoreno, S. (2018). Differences in institutional quality across euro area countries: which factors contribute most to inequality?. Panoeconomicus, 65(3), 363-379. https://doi.org/10.2298/pan1803363a
  • Bapuji, H. (2015). Individuals, interactions and institutions: how economic inequality affects organizations. Human Relations, 68(7), 1059-1083. https://doi.org/10.1177/0018726715584804
  • Bapuji, H. and Chrispal, S. (2018). Understanding economic inequality through the lens of caste. Academy of Management Proceedings, 2018(1), 15099. https://doi.org/10.5465/ambpp.2018.15099abstract
  • Baryshnikova, N., Pham, N., & Wihardja, M. (2016). Does political and economic inequality affect institutional quality?. Economic Record, 92(297), 190-208. https://doi.org/10.1111/1475-4932.12246
  • Beramendi, P. and Rueda, D. (2014). Inequality and institutions: the case of economic coordination. Annual Review of Political Science, 17(1), 251-271. https://doi.org/10.1146/annurev-polisci-032211-210535
  • Bièvre, D. and Ommeren, E. (2021). Multilateralism, bilateralism and institutional choice: the political economy of regime complexes in international trade policy. Global Policy, 12(S4), 14-24. https://doi.org/10.1111/1758-5899.12884
  • Early, B. and Spice, R. (2014). Economic sanctions, international institutions, and sanctions busters: when does institutionalized cooperation help sanctioning efforts?. Foreign Policy Analysis, 11(3), 339-360. https://doi.org/10.1111/fpa.12038
  • Frankema, E. (2010). The colonial roots of land inequality: geography, factor endowments, or institutions?. The Economic History Review, 63(2), 418-451. https://doi.org/10.1111/j.1468-0289.2009.00479.x
  • Gómez, E. and Atun, R. (2013). Emergence of multilateral proto-institutions in global health and new approaches to governance: analysis using path dependency and institutional theory. Globalization and Health, 9(1), 18. https://doi.org/10.1186/1744-8603-9-18
  • Kahler, M. (2013). Rising powers and global governance: negotiating change in a resilient status quo. International Affairs, 89(3), 711-729. https://doi.org/10.1111/1468-2346.12041
  • Linn, J. (2017). Recent threats to multilateralism. Global Journal of Emerging Market Economies, 9(1-3), 86-113. https://doi.org/10.1177/0972063417747765
  • Milner, H. and Tingley, D. (2012). The choice for multilateralism: foreign aid and american foreign policy. The Review of International Organizations, 8(3), 313-341. https://doi.org/10.1007/s11558-012-9153-x
  • Nigar, N. (2022). The composite impact of institutional quality and inequality on economic growth. The Pakistan Development Review, 779-791. https://doi.org/10.30541/v54i4i-iipp.779-791
  • Nyadera, İ., Agwanda, B., Önder, M., & Mukhtar, I. (2022). Multilateralism, developmental regionalism, and the african development bank. Politics and Governance, 10(2). https://doi.org/10.17645/pag.v10i2.4871
  • Riha, J., Ravindran, T., Atiim, G., Khanna, R., & Remme, M. (2025). Advancing gender equality in global health: what can we learn from successful gender integration across five un agencies?. Plos Global Public Health, 5(6), e0004697. https://doi.org/10.1371/journal.pgph.0004697
  • Santos, B., Devereaux, S., Gjerde, K., Chand, K., Martinez, J., & Crowder, L. (2022). The diverse benefits of biodiversity conservation in global ocean areas beyond national jurisdiction. Frontiers in Marine Science, 9. https://doi.org/10.3389/fmars.2022.1001240
  • Tan, W. (2020). The decline of multilateral cooperation: on the rising of fragmentation mode for governing global warming. J Int Polit, 2(1), 1-15. https://doi.org/10.22259/2642-8245.0201001
  • Viola, L. (2020). Us strategies of institutional adaptation in the face of hegemonic decline. Global Policy, 11(S3), 28-39. https://doi.org/10.1111/1758-5899.12856


Comentários