O paradoxo da politização brasileira

O Brasil vive um paradoxo: uma sociedade intensamente politizada, com debates acalorados tomando as redes sociais, as famílias e as mesas de bar, mas que, ao mesmo tempo, parece incapaz de articular um questionamento profundo às bases de sua organização social e econômica. As paixões políticas se inflamam, a polarização atinge níveis alarmantes, mas o status quo, em sua essência, permanece inabalado. Para compreender essa aparente contradição, é preciso revisitar brevemente o processo de politização que se desenhou no país a partir das Jornadas de Junho de 2013.

Em junho de 2013, uma onda de protestos, inicialmente encabeçada por estudantes contra o aumento das tarifas de transporte público, tomou as ruas das principais cidades brasileiras. O movimento, que rapidamente se expandiu, aglutinou uma insatisfação difusa com a qualidade dos serviços públicos e a corrupção. A pauta inicial era clara e unificadora: a reivindicação por direitos sociais prestados pelo Estado em um "padrão FIFA", uma crítica direta aos vultosos investimentos para a Copa do Mundo em detrimento de áreas essenciais como saúde e educação. Era um grito por um Estado de bem-estar social mais eficiente e presente.

Este cenário de aparente unidade começou a se fragmentar com a massiva interferência das redes sociais, em especial o Facebook, então a plataforma dominante. As empresas norte-americanas de tecnologia forneceram a arena para um novo tipo de debate público, algorítmico e propenso à formação de bolhas ideológicas.

Nesse ambiente digital, a politização começou a se polarizar. Um novo estrato social, mais à direita no espectro político, emergiu com força, sequestrando a pauta anticorrupção. O discurso, antes focado na má gestão dos recursos públicos para fins sociais, foi redirecionado para uma narrativa moralista e seletiva, que encontraria seu auge na Operação Lava Jato e no antipetismo.


Enquanto a direita se aglutinava em torno do combate à corrupção, a esquerda via o fortalecimento de pautas identitárias. Reivindicações ligadas à igualdade de direitos individuais para minorias ganharam protagonismo, representando um avanço inegável no campo dos direitos civis. Contudo, essa ênfase, por vezes, se deu em detrimento de uma crítica mais ampla às desigualdades estruturais. As discussões sobre a exploração inerente ao sistema capitalista e a luta por direitos sociais universais, que marcaram o início de 2013, perderam centralidade no debate progressista.

A derrubada da presidente Dilma Rousseff em 2016 representou um ponto de inflexão, consolidando a força do polo da direita. A partir de então, a agenda conservadora se expandiu, incorporando com vigor pautas religiosas e tradicionalistas. Temas como a defesa da "família cristã", a flexibilização do porte de armas (pauta da "bancada da bala") e os interesses do agronegócio passaram a dominar o discurso, formando uma coesa base de apoio.

Esse movimento culminou na eleição de Jair Bolsonaro em 2018, um político que soube capitalizar como poucos as ansiedades e os valores desse segmento da sociedade. Seu governo foi a expressão máxima dessa nova direita, que se manteve forte o suficiente para quase garantir sua reeleição em 2022.

O Paradoxo Atual: Politização sem Ruptura

Chegamos assim ao cenário atual: uma sociedade que respira política, onde a identificação com um dos polos ideológicos se tornou parte da identidade de muitos cidadãos. A polarização, embora com momentos de arrefecimento, segue como a principal tônica do debate público.

No entanto, o paradoxo se revela quando analisamos a profundidade das pautas em disputa. Os dois extremos do espectro político hegemônico, em suas manifestações mais visíveis, não tocam na essência da organização econômica e social vigente. As reivindicações contra o capitalismo, a crítica à irracionalidade de um sistema pautado pelo lucro das empresas privadas e a denúncia da crise ambiental como consequência direta desse modelo são vozes fracas ou periféricas.

A direita defende um liberalismo econômico que aprofunda a lógica do mercado, enquanto a esquerda institucional, em grande medida, busca gerenciar o capitalismo, tornando-o mais humano, sem, contudo, propor uma alternativa estrutural. As pautas identitárias, por mais justas e necessárias que sejam, quando desvinculadas de uma crítica sistêmica, correm o risco de serem absorvidas pela lógica do consumo e da representatividade vazia.

O resultado é uma politização de superfície, que mobiliza afetos e gera engajamento, mas que se mostra inofensiva ao status quo. O cidadão se sente politizado ao defender sua "tribo" ideológica, mas as estruturas de poder econômico, a precarização do trabalho e a degradação ambiental seguem seu curso, longe do centro do debate. O Brasil se tornou uma sociedade politicamente barulhenta, mas estruturalmente silenciosa.

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