A Economia Moral dos Números: O que as estatísticas não contam sobre a classe trabalhadora

Erik Chiconelli Gomes¹

A Experiência da Sobrevivência e a Frieza dos Índices

A história social nos ensina que o padrão de vida de uma população não pode ser medido apenas pela régua fria da acumulação monetária ou pelas médias estatísticas, mas sim pela experiência vivida no cotidiano das classes trabalhadoras. Ao analisarmos os dados recentes divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que apontam a pobreza e a desigualdade no menor patamar em trinta anos, somos confrontados com um paradoxo típico do capitalismo tardio: a melhoria dos índices macroeconômicos não elimina, necessariamente, a vulnerabilidade estrutural da vida operária. O aumento da renda média para R$ 2.015,00 e a queda da extrema pobreza para menos de 5% são conquistas inegáveis, mas devem ser lidas sob a luz das lutas diárias por dignidade.

É fundamental compreender que esses números, celebrados na reportagem de Thais Carrança para a BBC News Brasil, não são dádivas de uma burocracia estatal benevolente, nem apenas o resultado mecânico de "estímulos fiscais". Eles representam o resultado de uma pressão histórica e da necessidade de manutenção da ordem social através de programas como o Bolsa Família. Como nos lembra a historiografia de E.P. Thompson, a classe operária não é apenas vítima ou dado estatístico; ela é um agente ativo que, através de suas carências e reivindicações, força o Estado a criar mecanismos de proteção social, ainda que estes sejam vistos por alguns setores apenas como "gastos caros".

O pesquisador Pedro Ferreira de Souza, citado no texto da BBC, acerta ao diagnosticar que o sucesso da redução da miséria está intrinsecamente ligado à expansão das transferências de renda. No entanto, a fragilidade desse arranjo é exposta quando se observa que tais melhorias dependem de "ciclos de política fiscal expansionista". Isso remete ao conceito de economia moral: a expectativa popular de que o acesso aos bens essenciais (alimentação, moradia) não deve estar sujeito aos caprichos do mercado ou ao "espaço fiscal" do momento, mas sim garantido como direito consuetudinário de quem produz a riqueza.

O recuo do coeficiente de Gini para 50,4 indica um abrandamento na disparidade de renda, mas a história da desigualdade no Brasil é marcada por uma resiliência atroz. O fato de que a melhora nos indicadores sociais foi interrompida drasticamente pela crise de 2014-2015 e pela pandemia demonstra que, sem reformas estruturais profundas nas relações de produção, o trabalhador brasileiro vive em um estado de "segurança provisória". A renda sobe, mas a precariedade da inserção no mercado de trabalho — o "fazer-se" da classe trabalhadora em tempos de uberização — permanece uma constante ameaçadora.

Além disso, a análise meramente quantitativa tende a obscurecer a qualidade dessa "saída da pobreza". O aumento do poder de consumo, embora vital para a sobrevivência biológica, não equivale automaticamente à cidadania plena ou à emancipação política. O orçamento de R$ 158 bilhões do Bolsa Família para 2025 é, de fato, um escudo contra a fome, mas a dependência de transferências revela a incapacidade do mercado de trabalho "livre" em garantir, por si só, a reprodução da vida do trabalhador com dignidade, exigindo a intervenção constante do fundo público.

Não podemos cair na armadilha de celebrar a redução da pobreza sem questionar a manutenção da riqueza no topo, algo que o próprio estudo do Ipea admite ter limitações para captar. A "experiência" de classe não se resume ao quanto se ganha, mas a como se vive, como se adoece e como se morre. Os dados do Ipea são uma fotografia de um momento de alívio, mas o filme da história brasileira continua a rodar sobre trilhos de exploração secular, onde o alívio imediato convive com a incerteza do futuro, especialmente diante de um cenário fiscal que, segundo Souza, não permite novas expansões.

Portanto, ao olharmos para esses dados, devemos exercer uma vigilância crítica. A melhoria material é real e deve ser defendida contra as políticas de austeridade que visam desmontá-la, mas ela não encerra a questão social. Pelo contrário, ela a recoloca em novos termos: se o Estado é capaz de mitigar a miséria quando decide gastar, a persistência da pobreza em outros momentos é uma escolha política, e não uma fatalidade natural.



Tabela 1: Dialética entre Dados Oficiais e a Experiência Social

Indicador Oficial (Ipea/BBC)Leitura Crítica Historiográfica
Queda da Extrema Pobreza (<5%)Alívio material imediato, mas persistência da vulnerabilidade diante de crises futuras e dependência de vontade política.
Aumento da Renda Média (+70%)Ampliação do consumo básico sem, necessariamente, garantir acesso a serviços públicos de qualidade (saúde, educação) ou poder político.
Expansão do Bolsa FamíliaReconhecimento de que o salário de mercado é insuficiente para a reprodução da vida; o Estado atua como fiador da paz social.
Dependência do Ciclo FiscalEvidencia a fragilidade dos direitos sociais, que são tratados como "gastos" variáveis e não como obrigações permanentes do Estado.

A Persistência das Hierarquias Ocultas

Se a primeira parte desta análise focou na melhoria geral dos índices, é necessário agora descer ao "chão de fábrica" da sociedade brasileira, onde as médias estatísticas escondem abismos profundos. Como aponta Gleide Andrade em sua coluna no Brasil de Fato, a desigualdade no Brasil não é apenas uma questão de classe, mas é estruturada por raça e gênero. A persistência de uma diferença salarial de 21,2% entre homens e mulheres — que chega a brutais 53,3% quando comparamos mulheres negras a homens brancos — revela que a modernização econômica convive confortavelmente com arcaísmos coloniais.

A historiografia crítica nos alerta que o capitalismo se apropria de hierarquias preexistentes para baratear o custo da força de trabalho. O fato de as mulheres ganharem menos, mesmo com o aumento da escolaridade e da participação no mercado (41% dos vínculos formais), não é um "erro" do sistema, mas uma funcionalidade dele. A "Lei da Igualdade Salarial" sancionada pelo governo Lula é um avanço jurídico na tentativa de impor um freio moral à voracidade do mercado, mas a resistência das empresas em corrigir essas distorções (dois anos de estagnação na diferença salarial) mostra que a cultura patriarcal é um pilar de sustentação dos lucros.

A questão do "trabalho de cuidado", mencionada por Andrade, dialoga diretamente com a invisibilidade do trabalho doméstico na formação da classe operária. As mulheres dedicam o dobro do tempo aos afazeres domésticos, uma jornada não remunerada que garante que a força de trabalho masculina esteja pronta para o mercado no dia seguinte. Essa expropriação do tempo e da energia feminina é a base oculta sobre a qual se erguem os índices de produtividade e, ironicamente, a própria "melhora" da renda familiar citada anteriormente.

Quando analisamos o recorte racial, a situação se torna ainda mais dramática. A mulher negra, que recebe metade do salário do homem branco, carrega em seus ombros o peso cumulativo de séculos de escravidão e décadas de exclusão republicana. Dizer que "a hierarquia histórica organiza o país", como faz o texto do Brasil de Fato, é reconhecer que o mercado de trabalho é um espaço de disputa política e cultural, e não um ambiente neutro de oferta e demanda. A ascensão social celebrada pelos dados do Ipea chega de forma desigual; para alguns, o elevador social está quebrado.

A resistência das desigualdades raciais e de gênero, mesmo em períodos de bonança econômica e expansão de direitos, sugere que as políticas de transferência de renda, por mais eficazes que sejam no combate à fome, são insuficientes para demolir as barreiras estruturais do preconceito. O teto de vidro que impede mulheres de alcançarem cargos de gerência (apenas 37%) e a quase ausência de mulheres negras no topo (menos de 10%) são evidências de que a meritocracia é um mito que serve para legitimar a exclusão.

Nesse sentido, a luta pela igualdade salarial não é apenas uma demanda econômica ("injetar R$ 92,7 bilhões na economia"), mas uma batalha pela redefinição do que é valorizado na sociedade. A naturalização do machismo e do racismo nas relações trabalhistas opera como um mecanismo de disciplina, mantendo uma vasta parcela da população em posições subalternas, prontas para serem exploradas por salários aviltantes. É a manutenção de uma "classe dentro da classe", fragmentada para enfraquecer a coletividade.

Por fim, a transparência salarial exigida pela nova lei é um passo necessário para expor as entranhas desse sistema. No entanto, como a própria história das lutas operárias demonstra, a lei "no papel" precisa ser ativada pela mobilização social "na rua" e "na fábrica". A igualdade não será concedida voluntariamente pelos detentores do capital; ela precisará ser arrancada através da organização política e da denúncia constante das injustiças que os números gerais de crescimento tentam mascarar.

Tabela 2: A Anatomia da Desigualdade Estrutural

Grupo Social / SituaçãoDado Estatístico / Fato (Brasil de Fato/IBGE)Significado Histórico-Social
Mulheres (Geral)Ganham 21,2% menos que homens.Desvalorização sistemática da força de trabalho feminina, herança do patriarcado.
Mulheres NegrasGanham 53,3% menos que homens brancos.Intersecção de racismo e sexismo; a base da pirâmide de exploração brasileira.
Cargos de GerênciaApenas 37% ocupados por mulheres.Manutenção do poder decisório nas mãos masculinas; o "teto de vidro".
Trabalho de CuidadoMulheres dedicam o dobro do tempo que homens.Trabalho não pago que subsidia o capitalismo, invisibilizado nas contas nacionais.

Para Além das Estatísticas, a Dignidade Humana

Diante do exposto, torna-se evidente que a celebração dos avanços sociais, embora legítima, não pode servir de cortina de fumaça para as contradições que permanecem pulsantes no seio da sociedade. A redução da pobreza extrema é um triunfo da política pública, mas a persistência da desigualdade salarial e racial nos recorda que o progresso não é uma linha reta, mas um campo de batalha contínuo. A história não avança por inércia; ela é empurrada pelas necessidades e pelos sonhos daqueles que vivem do seu trabalho.

É crucial observar que a "fragilidade fiscal" frequentemente utilizada como argumento para limitar a expansão de direitos sociais é, no fundo, uma escolha sobre quem deve arcar com os custos do desenvolvimento. Quando se diz que não há mais espaço para crescer os investimentos sociais, está-se implicitamente aceitando que a balança deve pender, mais uma vez, para a proteção do capital em detrimento da proteção da vida. A economia, longe de ser uma ciência exata e fria, é uma ciência moral, onde cada número orçamentário reflete uma decisão sobre quem vive e quem apenas sobrevive.

O futuro do trabalho e da justiça social no Brasil dependerá da capacidade da sociedade de enxergar além do véu monetário. O verdadeiro desenvolvimento não se mede apenas pelo aumento do poder de compra, mas pela redução do tempo de trabalho necessário para a sobrevivência, pela garantia de tempo livre para a cultura e o lazer, e pela igualdade substantiva entre gêneros e raças. Enquanto uma parte da população tiver que trabalhar o dobro para ganhar a metade, qualquer índice de "sucesso econômico" será, em última instância, uma meia-verdade.

Não podemos ignorar que as estruturas que geram a desigualdade são resilientes e se adaptam aos novos tempos. A modernização das leis e a transparência são ferramentas poderosas, mas sozinhas não alteram a correlação de forças. É necessário que a percepção de injustiça, sentida na pele por mulheres e negros, se transforme em uma força política capaz de questionar não apenas a distribuição dos salários, mas a própria divisão social do trabalho e as lógicas de acumulação que perpetuam a miséria em meio à abundância.

A estabilidade social alcançada através de programas de transferência de renda é fundamental, mas não deve ser o horizonte final. O objetivo deve ser uma sociedade onde a dignidade não dependa de auxílios, mas seja intrínseca à condição de cidadão. Isso exige repensar o papel do Estado não apenas como um "hospital" que trata os feridos pelo mercado, mas como um agente que estrutura a economia para o bem-estar coletivo, priorizando a vida humana sobre as metas de superávit.

Vivemos, portanto, um momento de encruzilhada. Podemos nos contentar com a gestão eficiente da pobreza, mantendo as estruturas hierárquicas intactas, ou podemos usar esses avanços como base para construir uma sociedade verdadeiramente igualitária. A história nos mostra que nada é garantido para sempre; os direitos conquistados podem ser perdidos se não houver vigilância constante. A luta contra a desigualdade não é apenas técnica ou econômica, é, acima de tudo, uma luta pela alma da sociedade que queremos ser.

Em última análise, os números devem servir às pessoas, e não o contrário. Por trás de cada porcentagem de desemprego, de cada índice de Gini ou de cada cifra do orçamento público, existem histórias reais, sofrimentos reais e esperanças reais. Uma nação que se pretenda justa deve olhar para esses rostos, e não apenas para as planilhas, reconhecendo que a verdadeira riqueza de um país reside na dignidade plena e irrestrita de todos os seus filhos e filhas.


¹ : Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP). Atualmente, é Coordenador Acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Gleide. Mulheres ganham 21% menos que homens e a desigualdade resiste no mercado de trabalho. Brasil de Fato, 6 nov. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/colunista/gleide-andrade/2025/11/06/mulheres-ganham-21-menos-que-homens-e-a-desigualdade-resiste-no-mercado-de-trabalho/. Acesso em: 03 dez. 2025.

BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: os limites da democracia liberal. Revista Boitempo, São Paulo, n. 15, p. 45-58, 2018.

CARRANÇA, Thais. Pobreza e desigualdade atingem menor patamar em 30 anos: 'Bolsa Família expandido é caro, mas dá resultado'. BBC News Brasil, São Paulo, 25 nov. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3w7q81exexo. Acesso em: 03 dez. 2025.

KERSTENETZKY, Celia Lessa. O estado do bem-estar social na idade da razão: a reinvenção do estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. 295 p.

REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. Sociologias, Porto Alegre, v. 16, n. 35, p. 280-287, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/GwGWHJsjMXzWqQLXkYHTHVp/?format=html&lang=pt. Acesso em: 03 dez. 2025.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Comentários