MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA, LUTAS SOCIAIS E CIDADANIA NO BRASIL REPUBLICANO (1889-1985): uma análise historiográfica das contradições do desenvolvimento nacional

Por Erik Chiconelli Gomes

A história do Brasil republicano constitui campo privilegiado para a compreensão das contradições estruturais que marcaram a formação social brasileira ao longo do século XX. A transição do Império para a República, consumada no golpe militar de 15 de novembro de 1889, inaugurou um processo de transformações políticas que, longe de romper com as estruturas de dominação herdadas do período colonial e escravista, reconfigurou-as sob novas linguagens e arranjos institucionais. Como argumenta José Murilo de Carvalho (1987), a República nasceu sem qualquer participação popular significativa, constituindo-se fundamentalmente como projeto das elites urbanas e dos setores militares descontentes com a monarquia.

A análise do período republicano brasileiro exige uma abordagem que articule as dimensões política, econômica, social e cultural das transformações em curso, reconhecendo tanto os condicionantes estruturais quanto a capacidade de agência dos diferentes atores históricos. A perspectiva metodológica adotada neste artigo privilegia a história social, atenta às experiências das classes trabalhadoras e das populações marginalizadas, em diálogo com as contribuições fundamentais da historiografia contemporânea sobre trabalho, raça e cidadania no Brasil. Busca-se superar interpretações que reduzem a história republicana às ações das elites dirigentes, incorporando a dimensão das lutas sociais como elemento constitutivo do processo histórico.

O presente artigo estrutura-se em cinco seções principais, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, analisa-se a Primeira República (1889-1930), examinando as contradições entre a fachada liberal do regime e sua substância oligárquica excludente. A segunda seção dedica-se à Era Vargas (1930-1945; 1951-1954), investigando a articulação entre reformas modernizadoras e práticas autoritárias na construção do Estado nacional. A terceira seção examina a experiência democrática do pós-guerra (1946-1964), marcada pela tensão entre desenvolvimentismo e mobilização popular. A quarta seção analisa o golpe civil-militar de 1964 e a construção do regime autoritário. Por fim, a quinta seção aborda a transição democrática e suas contradições. Ao longo de todas as seções, busca-se evidenciar como a questão racial, a violência estatal e as lutas sociais atravessaram a experiência republicana brasileira.

A PRIMEIRA REPÚBLICA: LIBERALISMO, OLIGARQUIA E EXCLUSÃO (1889-1930)

A problemática central da Primeira República brasileira reside na tensão constitutiva entre a fachada liberal do regime e sua substância oligárquica excludente. A Constituição de 1891 estabeleceu formalmente uma República federativa, com separação de poderes, eleições periódicas e garantias civis básicas, mas a prática política efetiva converteu esses princípios em instrumentos de dominação das oligarquias estaduais. A historiografia contemporânea sobre o período demonstra que o liberalismo republicano não foi uma promessa não cumprida, mas antes um arranjo institucional deliberadamente desenhado para perpetuar estruturas de poder herdadas do Império e da escravidão, adaptando-as às exigências da modernização capitalista periférica (COSTA, 1999).

A economia agroexportadora permaneceu como eixo central da acumulação capitalista no Brasil, com o café consolidando-se como principal produto de exportação e fonte de divisas. Como analisa Boris Fausto (1977), a República Velha caracterizou-se pela hegemonia do setor cafeeiro, particularmente de São Paulo, que passou a controlar não apenas a produção mas também os mecanismos de financiamento e comercialização do café através de políticas de valorização implementadas pelos governos estadual e federal. O federalismo republicano permitiu que São Paulo utilizasse seus recursos fiscais para sustentar a economia cafeeira, socializando os custos da defesa dos preços através de empréstimos externos garantidos pelo governo federal.

A "Política dos Governadores", arquitetada por Campos Sales, institucionalizou o domínio das oligarquias através da troca de favores entre o governo federal e os governos estaduais, garantindo que as dissidências políticas fossem eliminadas através do controle das comissões de verificação de poderes do Congresso. O coronelismo, sistema de dominação política analisado magistralmente por Victor Nunes Leal (1975), representou a forma específica através da qual se articularam poder privado dos grandes proprietários rurais e poder público dos governos estaduais e federal. Este sistema garantia a perpetuação das oligarquias no poder através do controle do processo eleitoral, tornando as instituições republicanas mera fachada formal para a dominação oligárquica real.

A questão do trabalho constitui dimensão fundamental para compreender as transformações e continuidades sociais da transição republicana. A abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da República em 1889 ocorreram em contexto de profunda reestruturação das relações de trabalho no Brasil. As políticas republicanas privilegiaram a imigração europeia como solução para a "questão do trabalho", revelando projeto de embranquecimento populacional e exclusão deliberada dos trabalhadores negros recém-libertos. Como demonstra Lilia Moritz Schwarcz (1993), a virada republicana coincidiu com a difusão das teorias raciais europeias que hierarquizavam as raças e prognosticavam o fracasso das nações mestiças, moldando políticas públicas que aprofundaram a marginalização da população negra.

A formação das classes trabalhadoras urbanas na Primeira República ocorreu em contexto de extrema precariedade das condições de trabalho e ausência quase total de legislação protetora. As jornadas de trabalho chegavam frequentemente a quatorze ou dezesseis horas diárias, o trabalho infantil era generalizado, e acidentes de trabalho não geravam qualquer responsabilização patronal. Paulo Fontes (2008), em seus estudos sobre os trabalhadores e as lutas sociais urbanas, demonstra como as primeiras décadas republicanas foram marcadas por intensa conflitividade social, com greves cada vez mais frequentes e organizadas. A grande greve geral de 1917 em São Paulo, que paralisou a cidade e conquistou importantes reivindicações operárias, representa momento fundamental na afirmação da classe trabalhadora como sujeito político coletivo.

A inserção internacional do Brasil no período foi marcada pela continuidade da dependência agroexportadora, mas com uma diplomacia significativamente mais ativa. A gestão do Barão do Rio Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores representou um momento de consolidação das fronteiras nacionais e de aproximação estratégica com os Estados Unidos, fundamentada na percepção de que o Brasil necessitava de um parceiro poderoso para garantir sua estabilidade territorial. A participação brasileira na Primeira Guerra Mundial, embora limitada militarmente, teve consequências significativas para a percepção das elites nacionais sobre a vulnerabilidade do modelo agroexportador, estimulando o debate sobre a necessidade de industrialização (CERVO; BUENO, 2002).

A vida intelectual e cultural do período foi profundamente marcada pelo positivismo e pelo cientificismo que orientavam as elites republicanas. Nicolau Sevcenko (1983), em sua análise sobre a literatura e vida cultural no Rio de Janeiro republicano, demonstra como a belle époque tropical significou para as elites projeto civilizatório de europeização dos costumes, mas para as classes populares representou expropriação de seus espaços de moradia e criminalização de suas práticas culturais. A Revolta da Vacina de 1904 evidenciou as tensões entre o projeto modernizador autoritário e a resistência popular às intervenções que desconsideravam as condições materiais de vida da população pobre.

A violência como política de Estado manifestou-se de forma brutal na repressão aos movimentos que contestavam a ordem republicana. A Guerra de Canudos (1896-1897), analisada magistralmente por Euclides da Cunha, representou confronto entre projeto republicano modernizador e organização comunitária tradicional liderada por Antônio Conselheiro. O massacre final de Canudos, com milhares de mortos, evidenciou a violência extrema com que a República tratava as populações que não se enquadravam em seu projeto civilizatório. Fenômeno similar ocorreu na Guerra do Contestado (1912-1916), revelando padrão de exclusão e violência contra populações rurais pobres que se perpetuaria ao longo da história republicana.

A ERA VARGAS: REFORMAS, AUTORITARISMO E CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL (1930-1954)

A Era Vargas (1930-1945; 1951-1954) constitui um dos períodos mais analisados e debatidos da historiografia brasileira, representando uma ruptura fundamental com o arranjo político e econômico da Primeira República. A complexidade deste período reside precisamente na articulação entre dois processos aparentemente contraditórios, mas profundamente imbricados: a modernização capitalista através de reformas estruturais e a consolidação de um regime autoritário que suprimiu liberdades democráticas e autonomia dos movimentos sociais. Compreender esta dualidade exige superar interpretações maniqueístas que oscilam entre a celebração do "pai dos pobres" e a denúncia do ditador (FAUSTO, 2006).

A Revolução de 1930 representa, antes de tudo, uma ruptura com o pacto oligárquico que sustentara a Primeira República desde 1889. O movimento revolucionário que levou Vargas ao poder destruiu o equilíbrio federativo anterior, substituindo-o por um modelo profundamente centralizado onde o Executivo federal passa a concentrar as decisões fundamentais sobre economia, política e organização social. Esta centralização não foi apenas administrativa, mas representou uma refundação do Estado brasileiro como ator econômico e regulador das relações sociais, processo que alcançaria seu ápice com o Estado Novo (1937-1945) e a promulgação da Constituição de 1937.

A intervenção estatal na economia marca uma das principais características reformistas do período varguista. A crise internacional de 1929 e o colapso dos preços do café tornaram insustentável o modelo agroexportador que caracterizara a economia brasileira desde o período colonial. Vargas implementou uma política deliberada de industrialização por substituição de importações, criando empresas estatais estratégicas como a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942) e a Fábrica Nacional de Motores (1943). Esta intervenção não se limitou à criação de empresas, mas envolveu a construção de uma burocracia estatal modernizadora.

Esta dimensão modernizadora do Estado varguista, contudo, não pode ser analisada separadamente de seu caráter autoritário e controlador. Como argumenta Angela de Castro Gomes (2005) em sua obra seminal sobre a invenção do trabalhismo, Vargas construiu uma base social e ideológica que transformou o trabalhador urbano em protagonista político, mas sob condições estritas de tutela estatal. A legislação trabalhista, culminando na Consolidação das Leis do Trabalho (1943), representou simultaneamente uma conquista social inédita para a classe trabalhadora brasileira e um mecanismo sofisticado de controle e cooptação do movimento operário. Direitos como jornada de oito horas, férias remuneradas, regulamentação do trabalho feminino e infantil, e salário mínimo foram concedidos em troca da subordinação sindical ao Estado.

O conceito de "cidadania regulada", formulado por Wanderley Guilherme dos Santos (1979), torna-se fundamental para compreender esta ambiguidade estrutural do varguismo. Segundo este autor, a cidadania no Brasil não se expandiu através da universalização de direitos políticos, mas pela regulamentação de profissões e pela vinculação dos direitos sociais à inserção no mercado de trabalho formal. Ser cidadão no Brasil varguista significava possuir uma carteira de trabalho e estar inserido em uma das profissões regulamentadas pelo Estado. Esta lógica criou uma cidadania estratificada, onde aqueles que permaneciam à margem do mercado formal – particularmente os trabalhadores rurais – eram tratados como "pré-cidadãos", excluídos do pacto social varguista.

O autoritarismo varguista não se limitou ao controle do movimento operário, estendendo-se à repressão política sistemática de qualquer oposição ao regime. A Intentona Comunista de 1935, liderada por Luís Carlos Prestes e o PCB, serviu de pretexto para a decretação do Estado de Guerra e a implementação de uma legislação de exceção que suspendeu garantias constitucionais. A polícia política, especialmente através da Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DEOPS), perseguiu, torturou e assassinou militantes de esquerda, em uma antecipação sombria dos métodos que seriam aperfeiçoados durante a ditadura militar de 1964-1985.

A dimensão cultural e ideológica do projeto varguista também merece destaque, particularmente na construção de uma identidade nacional que legitimasse o autoritarismo. O Estado Novo desenvolveu uma sofisticada máquina de propaganda através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Este órgão controlava rigorosamente os meios de comunicação, promovia a censura de conteúdos críticos ao regime e divulgava uma ideologia nacionalista que celebrava Vargas como o líder carismático responsável pela modernização e pela integração nacional. A política externa varguista também reflete as contradições entre pragmatismo modernizador e alinhamento estratégico, culminando na participação brasileira na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados.

A questão racial e a persistência das desigualdades estruturais constituem outro aspecto fundamental para uma análise crítica da Era Vargas. Embora o discurso nacionalista do Estado Novo celebrasse a "democracia racial" e a mestiçagem como características positivas da identidade brasileira, esta ideologia serviu paradoxalmente para ocultar e perpetuar a marginalização da população negra. A legislação trabalhista varguista beneficiou primordialmente trabalhadores urbanos brancos, deixando à margem tanto os trabalhadores rurais quanto parcelas significativas da população negra que permaneciam em ocupações precárias e informais. A "cidadania regulada" revelou-se, assim, também uma cidadania racializada.

A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA DO PÓS-GUERRA: DESENVOLVIMENTISMO E MOBILIZAÇÃO POPULAR (1946-1964)

A experiência democrática brasileira entre 1946 e 1964 constituiu um período de profundas contradições estruturais, marcado pela coexistência de instituições liberais formais e práticas políticas herdadas do varguismo, em um contexto internacional de polarização ideológica da Guerra Fria. Este intervalo histórico, frequentemente caracterizado pela historiografia como a República Liberal-Populista, representa uma tentativa complexa de conciliar o projeto de modernização econômica acelerada com a ampliação da participação política das massas urbanas, em uma sociedade ainda profundamente marcada por desigualdades estruturais e pela fragilidade de suas instituições representativas (SKIDMORE, 1982).

O marco inaugural deste período encontra-se na promulgação da Constituição de 1946, que buscou restaurar as liberdades democráticas suprimidas durante o Estado Novo. O novo ordenamento constitucional garantiu o sufrágio universal masculino para alfabetizados, a liberdade partidária, a independência dos poderes e amplas garantias individuais. Contudo, a Constituição de 1946 não logrou criar mecanismos efetivos de estabilização democrática, mantendo ambiguidades quanto ao papel das Forças Armadas e preservando estruturas de poder oligárquicas no meio rural através da manutenção do voto censitário vinculado à alfabetização, que excluía vastas parcelas da população camponesa.

O desenvolvimentismo constituiu a ideologia econômica hegemônica do período, fundamentando-se na premissa de que o Brasil poderia superar sua condição periférica através da industrialização planejada e da intervenção estatal na economia. A contribuição teórica da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), sistematizada por economistas como Celso Furtado (1959), forneceu o arcabouço conceitual para o modelo de Industrialização por Substituição de Importações, que se tornou o eixo da política econômica brasileira. O Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) representou a mais ambiciosa expressão do desenvolvimentismo brasileiro, sintetizada no slogan "cinquenta anos em cinco".

A modernização econômica acelerada produziu profundas transformações na estrutura social brasileira, caracterizadas por um processo de urbanização vertiginoso que não foi acompanhado pela criação de infraestrutura adequada ou pela distribuição equitativa dos ganhos de produtividade. Entre 1940 e 1960, a população urbana brasileira mais que dobrou, processo impulsionado pelo êxodo rural massivo de trabalhadores que buscavam oportunidades de emprego nos centros industriais. Este fenômeno criou enormes pressões sobre as cidades, levando à proliferação de favelas, cortiços e loteamentos irregulares na periferia urbana, conformando o que posteriormente seria caracterizado como urbanização crítica ou modernização excludente.

As Ligas Camponesas constituem fenômeno central nas lutas sociais do período democrático, representando a entrada do campesinato como ator político organizado na cena nacional. Fundadas inicialmente como sociedades de auxílio mútuo na região da Zona da Mata nordestina, as Ligas se transformaram em movimento de massas sob liderança de Francisco Julião, articulando as demandas camponesas por terra e trabalho com um projeto político de reforma agrária radical. O lema "reforma agrária na lei ou na marra" expressava a disposição de radicalização do movimento camponês, que ameaçava a estrutura latifundiária ainda hegemônica no campo brasileiro.

A questão da política externa ganhou centralidade com a Política Externa Independente (PEI), implementada durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart. Esta política caracterizou-se pela diversificação de parcerias internacionais, incluindo o restabelecimento de relações diplomáticas com a União Soviética, a aproximação com países africanos e asiáticos recém-independentes, e a defesa da autodeterminação dos povos em fóruns multilaterais (VIZENTINI, 2004). A PEI gerou profundas desconfianças em Washington, contribuindo para o ambiente político que culminaria no golpe militar de 1964.

As Reformas de Base, defendidas pelo governo João Goulart a partir de 1963, sintetizaram as demandas acumuladas pelos movimentos sociais durante o período democrático, incluindo reforma agrária, reforma urbana, reforma bancária e extensão de direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais. O Comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964, no qual Goulart anunciou a nacionalização de refinarias particulares e a desapropriação de terras às margens de rodovias e ferrovias, representou o ápice da mobilização popular em torno das reformas estruturais, mas também precipitou a reação das forças conservadoras que culminaria no golpe civil-militar.

O GOLPE DE 1964 E A CONSTRUÇÃO DO REGIME MILITAR: REPRESSÃO, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA

O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 representou uma ruptura fundamental na história política brasileira, inaugurando um regime autoritário que perdurou por vinte e um anos e reconfigurou profundamente as estruturas do Estado nacional. A historiografia contemporânea tem demonstrado que o golpe não foi um evento isolado ou conjuntural, mas sim o resultado de uma articulação complexa entre interesses de classe, disputas ideológicas, pressões internacionais e projetos políticos de longo prazo que encontraram na ruptura institucional a solução para o impasse criado pela radicalização política do início dos anos 1960 (FICO, 2004).

A interpretação do golpe como contrarrevolução burguesa oferece um eixo analítico fundamental para compreender as motivações estruturais do movimento. René Armand Dreifuss (1981), em sua obra seminal, demonstrou de forma contundente que o golpe resultou de uma articulação orgânica entre as frações dominantes da burguesia brasileira e o capital internacional, mediada por organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que atuaram sistematicamente para desestabilizar o governo Goulart e preparar as condições políticas e ideológicas para a intervenção militar.

A consolidação do regime militar não se deu pela simples deposição de um presidente, mas através da construção sistemática de um novo ordenamento jurídico-institucional que permitiu a perpetuação do poder militar e a exclusão progressiva de qualquer possibilidade de contestação democrática. Os Atos Institucionais funcionaram como instrumentos legais que institucionalizaram a exceção e forneceram uma aparência de legalidade ao autoritarismo. O Ato Institucional número cinco, editado em dezembro de 1968, marcou o fechamento completo do regime e inaugurou o período mais repressivo da ditadura militar brasileira (NAPOLITANO, 2014).

A violência como política de Estado assumiu dimensões sistemáticas durante o regime militar. O sistema repressivo criado pelo regime constituiu uma verdadeira máquina de controle social e político que operou de forma sistemática e coordenada em todo o território nacional. Os órgãos de informação e repressão, particularmente o DOI-CODI, atuaram de forma integrada para identificar, perseguir, prender, torturar e, em muitos casos, eliminar fisicamente aqueles considerados inimigos do regime. A tortura foi adotada como método sistemático de interrogatório e intimidação, sendo praticada em instalações militares por agentes do Estado que permaneceram impunes (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).

A repressão ao movimento sindical e às organizações autônomas da classe trabalhadora constituiu uma prioridade imediata do novo regime. Nas primeiras semanas após o golpe, centenas de sindicatos urbanos e rurais sofreram intervenção direta do governo militar, com a deposição de suas diretorias eleitas e a nomeação de interventores alinhados com o novo regime. A desmobilização da classe trabalhadora não foi apenas repressiva, mas envolveu também a criação de mecanismos institucionais que visavam integrar os trabalhadores ao projeto desenvolvimentista do regime através de políticas compensatórias que não ameaçassem a estrutura de poder (ALVES, 2005).

A articulação entre repressão política e transformação econômica revela a funcionalidade do autoritarismo para o modelo de desenvolvimento capitalista dependente implementado pelo regime militar. O arrocho salarial, a precarização das condições de trabalho e a intensificação da exploração da força de trabalho foram condições necessárias para as altas taxas de crescimento econômico registradas durante o "milagre econômico" (1968-1973). A propaganda oficial do regime, coordenada pela Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), construiu uma narrativa ufanista que ocultava a repressão política e as consequências sociais do modelo econômico, utilizando slogans como "Brasil: ame-o ou deixe-o".

A resistência ao regime militar assumiu múltiplas formas, desde a luta armada das organizações de esquerda até as manifestações culturais que utilizavam metáforas e alegorias para criticar o autoritarismo. A Igreja Católica desempenhou papel contraditório durante o regime, oscilando entre o apoio inicial ao golpe e a crescente oposição à ditadura à medida que a repressão se intensificava. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) tornaram-se importantes espaços de resistência, denunciando torturas, defendendo presos políticos e articulando a oposição popular ao autoritarismo.

A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E O RESSURGIMENTO DAS LUTAS SOCIAIS (1974-1985)

A transição democrática brasileira representa um dos processos políticos mais complexos da história republicana do país, não podendo ser compreendida apenas como resultado da engenharia política das elites militares e civis, mas exigindo uma análise multifacetada que articule a crise estrutural do modelo econômico nacional-desenvolvimentista, a rearticulação das forças políticas institucionais e a emergência de novos atores sociais que pressionaram por transformações que ultrapassavam os limites do projeto original de abertura controlada.

A crise econômica que se abateu sobre o Brasil a partir de 1974, com o fim do "milagre econômico" e o início de um período prolongado de inflação elevada e endividamento externo crescente, corroeu progressivamente as bases de sustentação do regime militar. A fórmula da abertura "lenta, gradual e segura", anunciada pelo presidente Geisel, representava uma tentativa de controlar o ritmo e os limites da democratização, evitando tanto a perpetuação pura e simples da ditadura quanto uma transição abrupta que pudesse resultar em retaliações contra os militares ou em transformações sociais mais profundas.

O ressurgimento do movimento sindical no final dos anos 1970, particularmente através das grandes greves dos metalúrgicos do ABC paulista, demonstrou que a capacidade de mobilização e organização da classe trabalhadora havia sobrevivido aos anos de repressão. As greves de 1978, 1979 e 1980 mobilizaram centenas de milhares de trabalhadores, questionaram frontalmente a política salarial do governo e revelaram a existência de um novo sindicalismo combativo que não se limitava às estruturas corporativas controladas pelo Estado. Como demonstra Eder Sader (1988), este período testemunhou a entrada em cena de novos personagens que politizavam dimensões da vida social anteriormente consideradas alheias à disputa política.

A fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980 expressou a vontade de setores significativos do movimento operário, dos movimentos sociais urbanos e rurais e de intelectuais de esquerda de construir uma alternativa política autônoma que representasse efetivamente os interesses das classes trabalhadoras. O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, representou a rearticulação da luta antirracista em novas bases, superando as formas anteriores de organização e denunciando o mito da democracia racial brasileira. A articulação entre classe e raça nas análises do movimento negro demonstrou que a desigualdade social brasileira não pode ser compreendida apenas pela chave da exploração de classe.

A Lei da Anistia de 1979, ao anistiar simultaneamente opositores políticos e agentes da repressão, estabeleceu um pacto de impunidade que impediria qualquer processo significativo de responsabilização dos agentes da repressão e de reparação integral às vítimas da violência estatal. A campanha pelas Diretas Já em 1984 mobilizou milhões de brasileiros nas ruas das principais cidades, demonstrando a vitalidade das lutas sociais e sua capacidade de questionar o regime autoritário, ainda que a emenda Dante de Oliveira tenha sido derrotada no Congresso Nacional.

A Constituição de 1988, promulgada três anos após o fim formal do regime militar, representou uma tentativa de refundação democrática do Estado brasileiro através da garantia de amplos direitos sociais, políticos e civis. No entanto, as negociações que presidiram sua elaboração impediram transformações mais profundas em áreas sensíveis como a estrutura agrária e o controle democrático sobre as Forças Armadas. A manutenção de prerrogativas militares, a ausência de revisão dos atos praticados durante a ditadura e a continuidade de estruturas repressivas em instituições como as polícias militares demonstram os limites da transição brasileira e a permanência de heranças autoritárias na democracia contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da história republicana brasileira entre 1889 e 1985 revela um padrão persistente de modernização conservadora, no qual as transformações econômicas e institucionais foram sistematicamente conduzidas sem alteração das estruturas fundamentais de dominação social, exploração econômica e exclusão política. Da República Oligárquica à ditadura militar, passando pela Era Vargas e pelo período democrático de 1946-1964, o Estado brasileiro atuou simultaneamente como agente de modernização capitalista e como instrumento de controle das classes subalternas, articulando reformas parciais com repressão sistemática e cooptação das organizações autônomas dos trabalhadores.

A questão racial atravessa toda a história republicana como elemento estruturante das contradições brasileiras. Da exclusão sistemática da população negra no pós-abolição às persistentes desigualdades contemporâneas, passando pelo mito da democracia racial que serviu para ocultar a discriminação, a análise da dimensão racial revela que o projeto republicano de cidadania permaneceu sempre estratificado racialmente. A "cidadania regulada" não foi apenas uma cidadania de classe, mas também uma cidadania racializada que reproduziu hierarquias coloniais sob nova roupagem modernizadora.

A violência como política de Estado constitui outro fio condutor da experiência republicana brasileira. Das guerras contra Canudos e Contestado à repressão policial contra o movimento operário na Primeira República, da polícia política varguista aos porões da ditadura militar, o Estado brasileiro demonstrou disposição permanente para utilizar a força contra aqueles que contestavam a ordem estabelecida. Esta tradição de violência institucionalizada não desapareceu com a redemocratização, perpetuando-se nas práticas das polícias militares e no sistema prisional contemporâneo.

Contudo, a história do Brasil republicano não se resume à dominação e à exclusão. As lutas sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, das populações negras, dos movimentos populares e das organizações de esquerda demonstram a persistência da resistência e da agência das classes subalternas. Das greves gerais de 1917 e 1919 às mobilizações do ABC paulista no final dos anos 1970, passando pelas Ligas Camponesas e pela resistência à ditadura militar, os movimentos sociais brasileiros construíram tradições de luta que seguem vivas e fundamentais para qualquer projeto de transformação social democrática e igualitária no Brasil.

A compreensão adequada deste legado histórico, baseada em análise rigorosa das fontes e em diálogo crítico com a historiografia, é fundamental para que possamos pensar os desafios do presente e construir futuros mais justos e democráticos para a sociedade brasileira. A perspectiva metodológica da história social, atenta às experiências e à agência dos sujeitos historicamente marginalizados, oferece ferramentas indispensáveis para esta tarefa, permitindo superar narrativas que privilegiam apenas as ações das elites e do Estado para incorporar a dimensão das lutas sociais como elemento constitutivo do processo histórico brasileiro.

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