MODERNIZAÇÃO
CONSERVADORA, LUTAS SOCIAIS E CIDADANIA NO BRASIL REPUBLICANO (1889-1985): uma
análise historiográfica das contradições do desenvolvimento nacional
Por Erik Chiconelli Gomes
A história do Brasil republicano constitui campo
privilegiado para a compreensão das contradições estruturais que marcaram a
formação social brasileira ao longo do século XX. A transição do Império para a
República, consumada no golpe militar de 15 de novembro de 1889, inaugurou um
processo de transformações políticas que, longe de romper com as estruturas de
dominação herdadas do período colonial e escravista, reconfigurou-as sob novas
linguagens e arranjos institucionais. Como argumenta José Murilo de Carvalho
(1987), a República nasceu sem qualquer participação popular significativa,
constituindo-se fundamentalmente como projeto das elites urbanas e dos setores
militares descontentes com a monarquia.
A análise do período republicano brasileiro exige uma
abordagem que articule as dimensões política, econômica, social e cultural das
transformações em curso, reconhecendo tanto os condicionantes estruturais
quanto a capacidade de agência dos diferentes atores históricos. A perspectiva
metodológica adotada neste artigo privilegia a história social, atenta às
experiências das classes trabalhadoras e das populações marginalizadas, em
diálogo com as contribuições fundamentais da historiografia contemporânea sobre
trabalho, raça e cidadania no Brasil. Busca-se superar interpretações que
reduzem a história republicana às ações das elites dirigentes, incorporando a
dimensão das lutas sociais como elemento constitutivo do processo histórico.
O presente artigo estrutura-se em cinco seções principais,
além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, analisa-se
a Primeira República (1889-1930), examinando as contradições entre a fachada
liberal do regime e sua substância oligárquica excludente. A segunda seção
dedica-se à Era Vargas (1930-1945; 1951-1954), investigando a articulação entre
reformas modernizadoras e práticas autoritárias na construção do Estado
nacional. A terceira seção examina a experiência democrática do pós-guerra
(1946-1964), marcada pela tensão entre desenvolvimentismo e mobilização
popular. A quarta seção analisa o golpe civil-militar de 1964 e a construção do
regime autoritário. Por fim, a quinta seção aborda a transição democrática e
suas contradições. Ao longo de todas as seções, busca-se evidenciar como a
questão racial, a violência estatal e as lutas sociais atravessaram a
experiência republicana brasileira.
A PRIMEIRA REPÚBLICA: LIBERALISMO, OLIGARQUIA E
EXCLUSÃO (1889-1930)
A problemática central da Primeira República brasileira
reside na tensão constitutiva entre a fachada liberal do regime e sua
substância oligárquica excludente. A Constituição de 1891 estabeleceu
formalmente uma República federativa, com separação de poderes, eleições
periódicas e garantias civis básicas, mas a prática política efetiva converteu
esses princípios em instrumentos de dominação das oligarquias estaduais. A
historiografia contemporânea sobre o período demonstra que o liberalismo
republicano não foi uma promessa não cumprida, mas antes um arranjo
institucional deliberadamente desenhado para perpetuar estruturas de poder
herdadas do Império e da escravidão, adaptando-as às exigências da modernização
capitalista periférica (COSTA, 1999).
A economia agroexportadora permaneceu como eixo central da
acumulação capitalista no Brasil, com o café consolidando-se como principal
produto de exportação e fonte de divisas. Como analisa Boris Fausto (1977), a
República Velha caracterizou-se pela hegemonia do setor cafeeiro,
particularmente de São Paulo, que passou a controlar não apenas a produção mas
também os mecanismos de financiamento e comercialização do café através de
políticas de valorização implementadas pelos governos estadual e federal. O
federalismo republicano permitiu que São Paulo utilizasse seus recursos fiscais
para sustentar a economia cafeeira, socializando os custos da defesa dos preços
através de empréstimos externos garantidos pelo governo federal.
A "Política dos Governadores", arquitetada por
Campos Sales, institucionalizou o domínio das oligarquias através da troca de
favores entre o governo federal e os governos estaduais, garantindo que as
dissidências políticas fossem eliminadas através do controle das comissões de
verificação de poderes do Congresso. O coronelismo, sistema de dominação
política analisado magistralmente por Victor Nunes Leal (1975), representou a
forma específica através da qual se articularam poder privado dos grandes
proprietários rurais e poder público dos governos estaduais e federal. Este
sistema garantia a perpetuação das oligarquias no poder através do controle do
processo eleitoral, tornando as instituições republicanas mera fachada formal
para a dominação oligárquica real.
A questão do trabalho constitui dimensão fundamental para
compreender as transformações e continuidades sociais da transição republicana.
A abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da República em 1889 ocorreram
em contexto de profunda reestruturação das relações de trabalho no Brasil. As
políticas republicanas privilegiaram a imigração europeia como solução para a
"questão do trabalho", revelando projeto de embranquecimento
populacional e exclusão deliberada dos trabalhadores negros recém-libertos.
Como demonstra Lilia Moritz Schwarcz (1993), a virada republicana coincidiu com
a difusão das teorias raciais europeias que hierarquizavam as raças e
prognosticavam o fracasso das nações mestiças, moldando políticas públicas que
aprofundaram a marginalização da população negra.
A formação das classes trabalhadoras urbanas na Primeira
República ocorreu em contexto de extrema precariedade das condições de trabalho
e ausência quase total de legislação protetora. As jornadas de trabalho
chegavam frequentemente a quatorze ou dezesseis horas diárias, o trabalho
infantil era generalizado, e acidentes de trabalho não geravam qualquer
responsabilização patronal. Paulo Fontes (2008), em seus estudos sobre os
trabalhadores e as lutas sociais urbanas, demonstra como as primeiras décadas
republicanas foram marcadas por intensa conflitividade social, com greves cada
vez mais frequentes e organizadas. A grande greve geral de 1917 em São Paulo,
que paralisou a cidade e conquistou importantes reivindicações operárias,
representa momento fundamental na afirmação da classe trabalhadora como sujeito
político coletivo.
A inserção internacional do Brasil no período foi marcada
pela continuidade da dependência agroexportadora, mas com uma diplomacia
significativamente mais ativa. A gestão do Barão do Rio Branco à frente do
Ministério das Relações Exteriores representou um momento de consolidação das
fronteiras nacionais e de aproximação estratégica com os Estados Unidos,
fundamentada na percepção de que o Brasil necessitava de um parceiro poderoso
para garantir sua estabilidade territorial. A participação brasileira na
Primeira Guerra Mundial, embora limitada militarmente, teve consequências
significativas para a percepção das elites nacionais sobre a vulnerabilidade do
modelo agroexportador, estimulando o debate sobre a necessidade de
industrialização (CERVO; BUENO, 2002).
A vida intelectual e cultural do período foi profundamente
marcada pelo positivismo e pelo cientificismo que orientavam as elites
republicanas. Nicolau Sevcenko (1983), em sua análise sobre a literatura e vida
cultural no Rio de Janeiro republicano, demonstra como a belle époque
tropical significou para as elites projeto civilizatório de europeização dos
costumes, mas para as classes populares representou expropriação de seus
espaços de moradia e criminalização de suas práticas culturais. A Revolta da
Vacina de 1904 evidenciou as tensões entre o projeto modernizador autoritário e
a resistência popular às intervenções que desconsideravam as condições
materiais de vida da população pobre.
A violência como política de Estado manifestou-se de forma
brutal na repressão aos movimentos que contestavam a ordem republicana. A
Guerra de Canudos (1896-1897), analisada magistralmente por Euclides da Cunha,
representou confronto entre projeto republicano modernizador e organização
comunitária tradicional liderada por Antônio Conselheiro. O massacre final de
Canudos, com milhares de mortos, evidenciou a violência extrema com que a
República tratava as populações que não se enquadravam em seu projeto
civilizatório. Fenômeno similar ocorreu na Guerra do Contestado (1912-1916),
revelando padrão de exclusão e violência contra populações rurais pobres que se
perpetuaria ao longo da história republicana.
A ERA VARGAS: REFORMAS, AUTORITARISMO E CONSTRUÇÃO
DO ESTADO NACIONAL (1930-1954)
A Era Vargas (1930-1945; 1951-1954) constitui um dos
períodos mais analisados e debatidos da historiografia brasileira,
representando uma ruptura fundamental com o arranjo político e econômico da
Primeira República. A complexidade deste período reside precisamente na
articulação entre dois processos aparentemente contraditórios, mas
profundamente imbricados: a modernização capitalista através de reformas
estruturais e a consolidação de um regime autoritário que suprimiu liberdades
democráticas e autonomia dos movimentos sociais. Compreender esta dualidade
exige superar interpretações maniqueístas que oscilam entre a celebração do
"pai dos pobres" e a denúncia do ditador (FAUSTO, 2006).
A Revolução de 1930 representa, antes de tudo, uma ruptura
com o pacto oligárquico que sustentara a Primeira República desde 1889. O
movimento revolucionário que levou Vargas ao poder destruiu o equilíbrio
federativo anterior, substituindo-o por um modelo profundamente centralizado
onde o Executivo federal passa a concentrar as decisões fundamentais sobre
economia, política e organização social. Esta centralização não foi apenas
administrativa, mas representou uma refundação do Estado brasileiro como ator
econômico e regulador das relações sociais, processo que alcançaria seu ápice
com o Estado Novo (1937-1945) e a promulgação da Constituição de 1937.
A intervenção estatal na economia marca uma das principais
características reformistas do período varguista. A crise internacional de 1929
e o colapso dos preços do café tornaram insustentável o modelo agroexportador
que caracterizara a economia brasileira desde o período colonial. Vargas
implementou uma política deliberada de industrialização por substituição de
importações, criando empresas estatais estratégicas como a Companhia
Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942) e a Fábrica
Nacional de Motores (1943). Esta intervenção não se limitou à criação de
empresas, mas envolveu a construção de uma burocracia estatal modernizadora.
Esta dimensão modernizadora do Estado varguista, contudo,
não pode ser analisada separadamente de seu caráter autoritário e controlador.
Como argumenta Angela de Castro Gomes (2005) em sua obra seminal sobre a
invenção do trabalhismo, Vargas construiu uma base social e ideológica que
transformou o trabalhador urbano em protagonista político, mas sob condições
estritas de tutela estatal. A legislação trabalhista, culminando na
Consolidação das Leis do Trabalho (1943), representou simultaneamente uma
conquista social inédita para a classe trabalhadora brasileira e um mecanismo
sofisticado de controle e cooptação do movimento operário. Direitos como
jornada de oito horas, férias remuneradas, regulamentação do trabalho feminino
e infantil, e salário mínimo foram concedidos em troca da subordinação sindical
ao Estado.
O conceito de "cidadania regulada", formulado por
Wanderley Guilherme dos Santos (1979), torna-se fundamental para compreender
esta ambiguidade estrutural do varguismo. Segundo este autor, a cidadania no
Brasil não se expandiu através da universalização de direitos políticos, mas
pela regulamentação de profissões e pela vinculação dos direitos sociais à
inserção no mercado de trabalho formal. Ser cidadão no Brasil varguista
significava possuir uma carteira de trabalho e estar inserido em uma das
profissões regulamentadas pelo Estado. Esta lógica criou uma cidadania
estratificada, onde aqueles que permaneciam à margem do mercado formal –
particularmente os trabalhadores rurais – eram tratados como
"pré-cidadãos", excluídos do pacto social varguista.
O autoritarismo varguista não se limitou ao controle do
movimento operário, estendendo-se à repressão política sistemática de qualquer
oposição ao regime. A Intentona Comunista de 1935, liderada por Luís Carlos
Prestes e o PCB, serviu de pretexto para a decretação do Estado de Guerra e a
implementação de uma legislação de exceção que suspendeu garantias
constitucionais. A polícia política, especialmente através da Delegacia
Especial de Segurança Política e Social (DEOPS), perseguiu, torturou e
assassinou militantes de esquerda, em uma antecipação sombria dos métodos que
seriam aperfeiçoados durante a ditadura militar de 1964-1985.
A dimensão cultural e ideológica do projeto varguista também
merece destaque, particularmente na construção de uma identidade nacional que
legitimasse o autoritarismo. O Estado Novo desenvolveu uma sofisticada máquina
de propaganda através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Este
órgão controlava rigorosamente os meios de comunicação, promovia a censura de
conteúdos críticos ao regime e divulgava uma ideologia nacionalista que
celebrava Vargas como o líder carismático responsável pela modernização e pela
integração nacional. A política externa varguista também reflete as
contradições entre pragmatismo modernizador e alinhamento estratégico,
culminando na participação brasileira na Segunda Guerra Mundial ao lado dos
Aliados.
A questão racial e a persistência das desigualdades
estruturais constituem outro aspecto fundamental para uma análise crítica da
Era Vargas. Embora o discurso nacionalista do Estado Novo celebrasse a
"democracia racial" e a mestiçagem como características positivas da
identidade brasileira, esta ideologia serviu paradoxalmente para ocultar e
perpetuar a marginalização da população negra. A legislação trabalhista varguista
beneficiou primordialmente trabalhadores urbanos brancos, deixando à margem
tanto os trabalhadores rurais quanto parcelas significativas da população negra
que permaneciam em ocupações precárias e informais. A "cidadania
regulada" revelou-se, assim, também uma cidadania racializada.
A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA DO PÓS-GUERRA:
DESENVOLVIMENTISMO E MOBILIZAÇÃO POPULAR (1946-1964)
A experiência democrática brasileira entre 1946 e 1964
constituiu um período de profundas contradições estruturais, marcado pela
coexistência de instituições liberais formais e práticas políticas herdadas do
varguismo, em um contexto internacional de polarização ideológica da Guerra
Fria. Este intervalo histórico, frequentemente caracterizado pela
historiografia como a República Liberal-Populista, representa uma tentativa
complexa de conciliar o projeto de modernização econômica acelerada com a
ampliação da participação política das massas urbanas, em uma sociedade ainda
profundamente marcada por desigualdades estruturais e pela fragilidade de suas
instituições representativas (SKIDMORE, 1982).
O marco inaugural deste período encontra-se na promulgação
da Constituição de 1946, que buscou restaurar as liberdades democráticas
suprimidas durante o Estado Novo. O novo ordenamento constitucional garantiu o
sufrágio universal masculino para alfabetizados, a liberdade partidária, a
independência dos poderes e amplas garantias individuais. Contudo, a
Constituição de 1946 não logrou criar mecanismos efetivos de estabilização
democrática, mantendo ambiguidades quanto ao papel das Forças Armadas e
preservando estruturas de poder oligárquicas no meio rural através da
manutenção do voto censitário vinculado à alfabetização, que excluía vastas
parcelas da população camponesa.
O desenvolvimentismo constituiu a ideologia econômica
hegemônica do período, fundamentando-se na premissa de que o Brasil poderia
superar sua condição periférica através da industrialização planejada e da
intervenção estatal na economia. A contribuição teórica da Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL), sistematizada por economistas como Celso Furtado
(1959), forneceu o arcabouço conceitual para o modelo de Industrialização por
Substituição de Importações, que se tornou o eixo da política econômica
brasileira. O Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961)
representou a mais ambiciosa expressão do desenvolvimentismo brasileiro,
sintetizada no slogan "cinquenta anos em cinco".
A modernização econômica acelerada produziu profundas
transformações na estrutura social brasileira, caracterizadas por um processo
de urbanização vertiginoso que não foi acompanhado pela criação de
infraestrutura adequada ou pela distribuição equitativa dos ganhos de
produtividade. Entre 1940 e 1960, a população urbana brasileira mais que
dobrou, processo impulsionado pelo êxodo rural massivo de trabalhadores que
buscavam oportunidades de emprego nos centros industriais. Este fenômeno criou
enormes pressões sobre as cidades, levando à proliferação de favelas, cortiços
e loteamentos irregulares na periferia urbana, conformando o que posteriormente
seria caracterizado como urbanização crítica ou modernização excludente.
As Ligas Camponesas constituem fenômeno central nas lutas
sociais do período democrático, representando a entrada do campesinato como
ator político organizado na cena nacional. Fundadas inicialmente como
sociedades de auxílio mútuo na região da Zona da Mata nordestina, as Ligas se
transformaram em movimento de massas sob liderança de Francisco Julião,
articulando as demandas camponesas por terra e trabalho com um projeto político
de reforma agrária radical. O lema "reforma agrária na lei ou na
marra" expressava a disposição de radicalização do movimento camponês, que
ameaçava a estrutura latifundiária ainda hegemônica no campo brasileiro.
A questão da política externa ganhou centralidade com a
Política Externa Independente (PEI), implementada durante os governos de Jânio
Quadros e João Goulart. Esta política caracterizou-se pela diversificação de
parcerias internacionais, incluindo o restabelecimento de relações diplomáticas
com a União Soviética, a aproximação com países africanos e asiáticos
recém-independentes, e a defesa da autodeterminação dos povos em fóruns
multilaterais (VIZENTINI, 2004). A PEI gerou profundas desconfianças em
Washington, contribuindo para o ambiente político que culminaria no golpe
militar de 1964.
As Reformas de Base, defendidas pelo governo João Goulart a
partir de 1963, sintetizaram as demandas acumuladas pelos movimentos sociais
durante o período democrático, incluindo reforma agrária, reforma urbana,
reforma bancária e extensão de direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais.
O Comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964, no qual Goulart anunciou
a nacionalização de refinarias particulares e a desapropriação de terras às
margens de rodovias e ferrovias, representou o ápice da mobilização popular em
torno das reformas estruturais, mas também precipitou a reação das forças
conservadoras que culminaria no golpe civil-militar.
O GOLPE DE 1964 E A CONSTRUÇÃO DO REGIME MILITAR:
REPRESSÃO, VIOLÊNCIA E RESISTÊNCIA
O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 representou uma
ruptura fundamental na história política brasileira, inaugurando um regime
autoritário que perdurou por vinte e um anos e reconfigurou profundamente as
estruturas do Estado nacional. A historiografia contemporânea tem demonstrado
que o golpe não foi um evento isolado ou conjuntural, mas sim o resultado de
uma articulação complexa entre interesses de classe, disputas ideológicas,
pressões internacionais e projetos políticos de longo prazo que encontraram na
ruptura institucional a solução para o impasse criado pela radicalização
política do início dos anos 1960 (FICO, 2004).
A interpretação do golpe como contrarrevolução burguesa
oferece um eixo analítico fundamental para compreender as motivações estruturais
do movimento. René Armand Dreifuss (1981), em sua obra seminal, demonstrou de
forma contundente que o golpe resultou de uma articulação orgânica entre as
frações dominantes da burguesia brasileira e o capital internacional, mediada
por organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que atuaram sistematicamente
para desestabilizar o governo Goulart e preparar as condições políticas e
ideológicas para a intervenção militar.
A consolidação do regime militar não se deu pela simples
deposição de um presidente, mas através da construção sistemática de um novo
ordenamento jurídico-institucional que permitiu a perpetuação do poder militar
e a exclusão progressiva de qualquer possibilidade de contestação democrática.
Os Atos Institucionais funcionaram como instrumentos legais que
institucionalizaram a exceção e forneceram uma aparência de legalidade ao
autoritarismo. O Ato Institucional número cinco, editado em dezembro de 1968,
marcou o fechamento completo do regime e inaugurou o período mais repressivo da
ditadura militar brasileira (NAPOLITANO, 2014).
A violência como política de Estado assumiu dimensões
sistemáticas durante o regime militar. O sistema repressivo criado pelo regime constituiu
uma verdadeira máquina de controle social e político que operou de forma
sistemática e coordenada em todo o território nacional. Os órgãos de informação
e repressão, particularmente o DOI-CODI, atuaram de forma integrada para
identificar, perseguir, prender, torturar e, em muitos casos, eliminar
fisicamente aqueles considerados inimigos do regime. A tortura foi adotada como
método sistemático de interrogatório e intimidação, sendo praticada em
instalações militares por agentes do Estado que permaneceram impunes
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).
A repressão ao movimento sindical e às organizações
autônomas da classe trabalhadora constituiu uma prioridade imediata do novo
regime. Nas primeiras semanas após o golpe, centenas de sindicatos urbanos e rurais
sofreram intervenção direta do governo militar, com a deposição de suas
diretorias eleitas e a nomeação de interventores alinhados com o novo regime. A
desmobilização da classe trabalhadora não foi apenas repressiva, mas envolveu
também a criação de mecanismos institucionais que visavam integrar os
trabalhadores ao projeto desenvolvimentista do regime através de políticas
compensatórias que não ameaçassem a estrutura de poder (ALVES, 2005).
A articulação entre repressão política e transformação econômica
revela a funcionalidade do autoritarismo para o modelo de desenvolvimento
capitalista dependente implementado pelo regime militar. O arrocho salarial, a
precarização das condições de trabalho e a intensificação da exploração da
força de trabalho foram condições necessárias para as altas taxas de
crescimento econômico registradas durante o "milagre econômico"
(1968-1973). A propaganda oficial do regime, coordenada pela Assessoria
Especial de Relações Públicas (AERP), construiu uma narrativa ufanista que
ocultava a repressão política e as consequências sociais do modelo econômico,
utilizando slogans como "Brasil: ame-o ou deixe-o".
A resistência ao regime militar assumiu múltiplas formas,
desde a luta armada das organizações de esquerda até as manifestações culturais
que utilizavam metáforas e alegorias para criticar o autoritarismo. A Igreja
Católica desempenhou papel contraditório durante o regime, oscilando entre o
apoio inicial ao golpe e a crescente oposição à ditadura à medida que a
repressão se intensificava. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) tornaram-se importantes espaços de
resistência, denunciando torturas, defendendo presos políticos e articulando a
oposição popular ao autoritarismo.
A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E O RESSURGIMENTO DAS LUTAS
SOCIAIS (1974-1985)
A transição democrática brasileira representa um dos
processos políticos mais complexos da história republicana do país, não podendo
ser compreendida apenas como resultado da engenharia política das elites
militares e civis, mas exigindo uma análise multifacetada que articule a crise
estrutural do modelo econômico nacional-desenvolvimentista, a rearticulação das
forças políticas institucionais e a emergência de novos atores sociais que
pressionaram por transformações que ultrapassavam os limites do projeto
original de abertura controlada.
A crise econômica que se abateu sobre o Brasil a partir de
1974, com o fim do "milagre econômico" e o início de um período
prolongado de inflação elevada e endividamento externo crescente, corroeu
progressivamente as bases de sustentação do regime militar. A fórmula da
abertura "lenta, gradual e segura", anunciada pelo presidente Geisel,
representava uma tentativa de controlar o ritmo e os limites da democratização,
evitando tanto a perpetuação pura e simples da ditadura quanto uma transição
abrupta que pudesse resultar em retaliações contra os militares ou em
transformações sociais mais profundas.
O ressurgimento do movimento sindical no final dos anos
1970, particularmente através das grandes greves dos metalúrgicos do ABC
paulista, demonstrou que a capacidade de mobilização e organização da classe
trabalhadora havia sobrevivido aos anos de repressão. As greves de 1978, 1979 e
1980 mobilizaram centenas de milhares de trabalhadores, questionaram
frontalmente a política salarial do governo e revelaram a existência de um novo
sindicalismo combativo que não se limitava às estruturas corporativas
controladas pelo Estado. Como demonstra Eder Sader (1988), este período testemunhou
a entrada em cena de novos personagens que politizavam dimensões da vida social
anteriormente consideradas alheias à disputa política.
A fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980 expressou a
vontade de setores significativos do movimento operário, dos movimentos sociais
urbanos e rurais e de intelectuais de esquerda de construir uma alternativa
política autônoma que representasse efetivamente os interesses das classes
trabalhadoras. O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, representou
a rearticulação da luta antirracista em novas bases, superando as formas
anteriores de organização e denunciando o mito da democracia racial brasileira.
A articulação entre classe e raça nas análises do movimento negro demonstrou
que a desigualdade social brasileira não pode ser compreendida apenas pela
chave da exploração de classe.
A Lei da Anistia de 1979, ao anistiar simultaneamente
opositores políticos e agentes da repressão, estabeleceu um pacto de impunidade
que impediria qualquer processo significativo de responsabilização dos agentes
da repressão e de reparação integral às vítimas da violência estatal. A
campanha pelas Diretas Já em 1984 mobilizou milhões de brasileiros nas ruas das
principais cidades, demonstrando a vitalidade das lutas sociais e sua capacidade
de questionar o regime autoritário, ainda que a emenda Dante de Oliveira tenha
sido derrotada no Congresso Nacional.
A Constituição de 1988, promulgada três anos após o fim
formal do regime militar, representou uma tentativa de refundação democrática
do Estado brasileiro através da garantia de amplos direitos sociais, políticos
e civis. No entanto, as negociações que presidiram sua elaboração impediram
transformações mais profundas em áreas sensíveis como a estrutura agrária e o
controle democrático sobre as Forças Armadas. A manutenção de prerrogativas
militares, a ausência de revisão dos atos praticados durante a ditadura e a
continuidade de estruturas repressivas em instituições como as polícias
militares demonstram os limites da transição brasileira e a permanência de
heranças autoritárias na democracia contemporânea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da história republicana brasileira entre 1889 e
1985 revela um padrão persistente de modernização conservadora, no qual as
transformações econômicas e institucionais foram sistematicamente conduzidas
sem alteração das estruturas fundamentais de dominação social, exploração
econômica e exclusão política. Da República Oligárquica à ditadura militar,
passando pela Era Vargas e pelo período democrático de 1946-1964, o Estado
brasileiro atuou simultaneamente como agente de modernização capitalista e como
instrumento de controle das classes subalternas, articulando reformas parciais
com repressão sistemática e cooptação das organizações autônomas dos trabalhadores.
A questão racial atravessa toda a história republicana como
elemento estruturante das contradições brasileiras. Da exclusão sistemática da
população negra no pós-abolição às persistentes desigualdades contemporâneas,
passando pelo mito da democracia racial que serviu para ocultar a
discriminação, a análise da dimensão racial revela que o projeto republicano de
cidadania permaneceu sempre estratificado racialmente. A "cidadania
regulada" não foi apenas uma cidadania de classe, mas também uma cidadania
racializada que reproduziu hierarquias coloniais sob nova roupagem
modernizadora.
A violência como política de Estado constitui outro fio
condutor da experiência republicana brasileira. Das guerras contra Canudos e
Contestado à repressão policial contra o movimento operário na Primeira
República, da polícia política varguista aos porões da ditadura militar, o
Estado brasileiro demonstrou disposição permanente para utilizar a força contra
aqueles que contestavam a ordem estabelecida. Esta tradição de violência institucionalizada
não desapareceu com a redemocratização, perpetuando-se nas práticas das
polícias militares e no sistema prisional contemporâneo.
Contudo, a história do Brasil republicano não se resume à
dominação e à exclusão. As lutas sociais dos trabalhadores urbanos e rurais,
das populações negras, dos movimentos populares e das organizações de esquerda
demonstram a persistência da resistência e da agência das classes subalternas.
Das greves gerais de 1917 e 1919 às mobilizações do ABC paulista no final dos
anos 1970, passando pelas Ligas Camponesas e pela resistência à ditadura
militar, os movimentos sociais brasileiros construíram tradições de luta que
seguem vivas e fundamentais para qualquer projeto de transformação social
democrática e igualitária no Brasil.
A compreensão adequada deste legado histórico, baseada em
análise rigorosa das fontes e em diálogo crítico com a historiografia, é
fundamental para que possamos pensar os desafios do presente e construir
futuros mais justos e democráticos para a sociedade brasileira. A perspectiva
metodológica da história social, atenta às experiências e à agência dos
sujeitos historicamente marginalizados, oferece ferramentas indispensáveis para
esta tarefa, permitindo superar narrativas que privilegiam apenas as ações das
elites e do Estado para incorporar a dimensão das lutas sociais como elemento
constitutivo do processo histórico brasileiro.
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