O Estado contemporâneo é capitalista ou pode promover a superação do capitalismo? Essa questão crucial provoca reflexões profundas.
Inicialmente, alguns autores indicam a possibilidade de o Estado contemporâneo atuar no sentido da superação do capitalismo. Zhang e Zeng (2021), por exemplo, destacam que o Estado pode desempenhar papéis na promoção da inovação e sustentabilidade, sugerindo uma potencial ruptura com a lógica capitalista tradicional. Nesse sentido, iniciativas estatais, especialmente em contextos de crise ambiental, poderiam indicar uma tentativa de superar os limites do capitalismo, ao priorizar o bem coletivo e não o lucro individual imediato.
Entretanto, tal perspectiva frequentemente negligencia o fato de que essas ações, mesmo aparentemente progressistas, acabam subordinadas à lógica da acumulação capitalista (Quentin, 2022). O Estado, assim, adapta-se às demandas do capital para promover estabilidade e crescimento econômico sem, necessariamente, transformar profundamente as estruturas econômicas.
Uma análise marxista rigorosa sugere que o Estado contemporâneo é fundamentalmente capitalista: o Estado serve principalmente como garantidor das condições gerais de produção e reprodução das relações capitalistas. Em outras palavras, ele assegura as condições institucionais, jurídicas e materiais para que o capital continue a acumular-se, controlando as contradições internas ao sistema e evitando que estas atinjam um ponto crítico que poderia levar a crises sistêmicas.
Nessa linha, Apeldoorn et al. (2012) defendem que o Estado atua majoritariamente na manutenção das condições favoráveis à acumulação do capital, administrando as desigualdades e evitando transformações que ameacem o equilíbrio sistêmico. Assim, o Estado opera como um termostato, ajustando e controlando as contradições capitalistas para manter a estabilidade econômica e social, protegendo e perpetuando os interesses das classes dominantes existentes e possibilitando o surgimento de novas classes sociais.
Paul e Cumbers (2021) reforçam que o retorno recente do Estado às políticas públicas, frequentemente visto como reação ao neoliberalismo, não implica uma ruptura com a lógica capitalista. Em vez disso, configura uma adaptação que visa assegurar o funcionamento ordenado do mercado, ao mesmo tempo em que permite a implementação de políticas sociais que minimizam tensões sociais graves, sem abandonar a lógica fundamental do capitalismo.
Os estudos sobre capitalismo de Estado realizados por Alami e Dixon (2019, 2023) reforçam que a atual configuração híbrida entre Estado e capital privado visa, sobretudo, aprofundar e gerenciar a acumulação capitalista. Esses arranjos promovem o desenvolvimento econômico acelerado, gerenciando desigualdades sociais e econômicas de forma a impedir que se tornem disruptivas para o sistema.
Exemplos concretos como a gentrificação patrocinada pelo Estado, discutida por He (2007), demonstram claramente a função estatal de favorecer o capital imobiliário, garantindo ao mesmo tempo que a desigualdade resultante não atinja níveis críticos que possam ameaçar a ordem social vigente. Intervenções estatais dessa natureza mantêm as contradições capitalistas sob controle, permitindo que o sistema econômico funcione de maneira relativamente estável.
Adicionalmente, a lógica da financiarização, abordada por Sokol (2022), evidencia que as intervenções estatais em períodos de crise econômica seguem frequentemente uma dinâmica específica: proteger grandes capitalistas e instituições financeiras para evitar colapsos sistêmicos que poderiam ameaçar o funcionamento do capitalismo como um todo. Isso evidencia uma função estatal fundamentalmente alinhada aos imperativos do capital, atuando como gestor das contradições internas do sistema.
Por fim, é preciso destacar que qualquer capacidade do Estado contemporâneo de atuar como agente da superação do capitalismo ignora a profunda interdependência estrutural entre Estado e capital. Essa interdependência sugere que o Estado atual não apenas mantém, mas administra as contradições capitalistas de forma a permitir a continuidade e estabilidade do sistema.
Portanto, sob uma perspectiva marxista coerente, o Estado contemporâneo revela-se como um termostato das contradições capitalistas, promovendo desenvolvimento econômico, políticas sociais moderadas e estabilidade, sempre dentro dos limites que permitem ao capitalismo se perpetuar e prosperar. Não seria, portanto, um instrumento para sua superação.
Referências:
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- Andrew, J. and Baker, M. (2024). Hegemony, global capitalism and the role of diplomacy in extractive industries. Accounting Auditing & Accountability Journal, 38(1), 174-199. https://doi.org/10.1108/aaaj-03-2023-6353
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- Quentin, C. (2022). Global production and the crisis of the tax state. Environment and Planning a Economy and Space, 56(8), 2196-2212. https://doi.org/10.1177/0308518x221105083
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- Zhang, Q. and Zeng, H. (2021). Politically directed accumulation in rural china: the making of the agrarian capitalist class and the new agrarian question of capital. Journal of Agrarian Change, 21(4), 677-701. https://doi.org/10.1111/joac.12435
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