Estado, política e teatro no Segundo Império (1840-1889)

Adriano de Assis Ferreira
São Paulo, 2025
Editora Pensamento Crítico
(Coleção Teatro Ligeiro)
ISBN 978-65-989965-0-5

Introdução

O Segundo Reinado brasileiro (1840-1889) constitui o período mais longo e estável da história monárquica do país. Sob o governo de D. Pedro II, o Império atravessou quase meio século de relativa continuidade institucional, pontuada por crises que, embora graves, não chegaram a romper a ordem constitucional senão em seu momento final. A Guerra do Paraguai, a questão escravista, a ascensão do republicanismo: todas essas tensões abalaram o regime sem, contudo, precipitar sua queda antes de 1889. Essa estabilidade, todavia, não se traduziu em consolidação de uma política cultural consistente para o teatro. Ao contrário: o que se observa ao longo do período é a permanência de um modelo de intervenção estatal marcado por ambivalências estruturais, combinando fomento indireto e intermitente com vigilância permanente, proteção retórica com abandono institucional, discurso civilizador com práticas autoritárias.

Este texto examina a relação entre Estado e teatro durante o Segundo Reinado, investigando os mecanismos de financiamento, as estruturas de controle e as concepções ideológicas que orientaram a política teatral imperial entre a Maioridade (1840) e a Proclamação da República (1889). A análise se organiza em torno de uma tese central: o Estado imperial, herdeiro de um modelo de intervenção gestado no período joanino e no Primeiro Reinado, aprofundou a lógica do "proteger e vigiar" sem jamais assumir a responsabilidade pela criação de instituições teatrais públicas duradouras. O resultado foi um arranjo paradoxal, em que o controle se intensificava à medida que o fomento se tornava mais precário, e em que a retórica da civilização convivia com a incapacidade de construir as bases materiais de uma cena nacional.

A escolha do recorte cronológico justifica-se por seu caráter ao mesmo tempo unitário e internamente diferenciado. O Segundo Reinado não constitui um bloco homogêneo: entre 1840 e 1889, a política teatral atravessa fases distintas, marcadas por diferentes graus de intervenção estatal, diferentes configurações do mercado cênico e diferentes relações entre o palco e a esfera pública. A periodização adotada distingue três momentos. O primeiro corresponde a uma fase de consolidação institucional e centralização (1840-1850), em que se criam as estruturas de controle e se institucionaliza a censura. O segundo abrange uma fase de intervenção e crise latente (1850-1864), em que o patrocínio imperial se revela seletivo e o projeto de um teatro nacional esbarra em limites estruturais. O terceiro compreende uma fase de erosão política (1864-1889), em que a crise do regime se reflete na cena e a sátira se torna forma privilegiada de crítica social.

Antes de percorrer essas fases, contudo, é necessário situar o ponto de partida. O modelo de política teatral que o Segundo Reinado herda não nasce em 1840, mas se ancora em uma trajetória anterior, inaugurada com a vinda da Corte portuguesa em 1808 e consolidada ao longo do Primeiro Reinado. A construção do Real Teatro São João, inaugurado em 1813 por ocasião do aniversário do futuro D. Pedro I, é exemplar dessa trajetória: o novo edifício substituía uma casa de espetáculos de dimensões modestas e simbolizava as transformações da capital do reino, articulando a presença da família real ao projeto de afirmação da monarquia no Atlântico Sul. Desde então, o palco foi pensado como lugar de representação da ordem régia e de celebração de feitos monárquicos, ao mesmo tempo em que se fazia circular, entre os súditos, um repertório de valores marcados pelo ideal de "civilização" de corte europeia.

É nesse movimento mais longo que se consolida a ambivalência estrutural definidora da política teatral imperial. De um lado, a proteção e o fomento. Desde a chegada da família real, a monarquia portuguesa transplantada ao Brasil cultivou uma prática de mecenato que associava o apoio às artes cênicas à própria dignidade da Coroa. Frequentar e sustentar teatros integrava o repertório de sinais de soberania e de distinção cultural. Ao longo da primeira metade do século XIX, a principal ferramenta de incentivo público à atividade teatral foi a concessão de loterias, mecanismo importado da experiência portuguesa que permitia ao Estado, frequentemente sem fundos suficientes, mobilizar recursos privados em favor de empreendimentos considerados de interesse régio, sem comprometer de modo direto o erário. A loteria funcionava, assim, como uma forma de "mecenato à distância": o soberano concedia o privilégio, legitimava a empresa como culturalmente útil e transferia à sociedade o ônus material do financiamento. Nessa lógica, o teatro era reiteradamente descrito como espaço de difusão de bons costumes, de correção de vícios sociais e de aperfeiçoamento da língua, uma verdadeira "escola de costumes", nos termos com que a historiografia recente sintetiza a retórica civilizadora do período.

De outro lado, a vigilância e o controle. A mesma mão que protegia era a que vigiava. Desde o período joanino, e mais claramente ao longo do Primeiro Reinado, a censura e a fiscalização dos teatros ficaram a cargo da Intendência-Geral de Polícia, órgão que encarnava a face repressiva do Estado e que tratava o espetáculo dramático como questão de ordem pública. Editais e avisos sucessivos, como os de 1824 e 1829, estabeleciam que nenhuma peça podia subir à cena sem prévio exame da polícia, que deveria coibir ofensas à moral, à religião, à decência e às autoridades. A presença policial nas salas de espetáculo não se limitava ao crivo documental. Agentes identificados como responsáveis pela "polícia do teatro" ocupavam o espaço da plateia, acompanhavam o desempenho dos atores e detinham poder para interromper as representações e prender intérpretes em caso de desacato ou de inobservância das orientações censórias. A cena, portanto, era vigiada em tempo real, o que reforçava a percepção do teatro como zona sensível, em que a palavra pública deveria ser regulada com rigor.

O modelo que se consolida até o início do Segundo Reinado é, assim, profundamente ambíguo. O Estado faz do teatro um emblema de civilização e um instrumento de pedagogia social, mas não assume integralmente os custos da empreitada e tampouco abre mão de sujeitá-la a uma tutela policial severa. A mesma estrutura que exalta o teatro como ornamento do trono e como prova de refinamento nacional é aquela que o "domestica", submetendo a produção cênica a uma malha de autorizações, relatórios e vistorias. É sobre esse alicerce, protetor e vigilante, que se erguerão, a partir de 1840, novas instituições voltadas a centralizar e racionalizar a intervenção estatal no campo teatral.

A instauração do Segundo Reinado, com a antecipação da maioridade de D. Pedro II, reabre a discussão sobre os instrumentos necessários para garantir a unidade do Império e estabilizar o regime. Depois de uma década marcada por revoltas provinciais e disputas em torno da forma do pacto imperial, a Corte busca articular um projeto de Estado-nação que combine centralização política e produção de identidade coletiva. Nesse desenho, a cultura, e dentro dela o teatro, é convocada a desempenhar função estratégica: trata-se de difundir uma ideia de Brasil civilizado, hierarquizado e pacificado sob a égide da monarquia constitucional. Não é casual, portanto, que, ao lado de instituições como o Colégio Pedro II (1837) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), surja, em 1843, o Conservatório Dramático Brasileiro, associação de homens de letras que se propunha a organizar o repertório e a vida teatral da Corte, "animando e exercitando o talento nacional para os assuntos dramáticos" e corrigindo "os vícios da cena brasileira".

O que se verá nas páginas seguintes é que essa promessa de racionalização e institucionalização jamais se cumpriu plenamente. O Conservatório Dramático, oficializado como órgão de censura em 1845, não deslocou a primazia do controle policial. As loterias, principal instrumento de fomento, permaneceram marcadas por atrasos, desvios e disputas administrativas. O projeto de um teatro público monumental naufragou em meio à má gestão e à recusa imperial em assumir compromissos orçamentários duradouros. E o sonho de uma "Comédia Brasileira" nos moldes da Comédie-Française, acalentado por dramaturgos e críticos ao longo de todo o período, esbarrou na incompatibilidade estrutural entre o modelo francês e a realidade institucional do Império. Ao final do Segundo Reinado, o teatro brasileiro encontrava-se sob o mesmo regime de controle construído meio século antes: a censura permanecia ativa, a polícia continuava a fiscalizar a cena, e o Estado jamais instituíra um "teatro nacional" nos moldes sonhados pelas gerações anteriores.

As fontes mobilizadas para esta análise incluem a historiografia especializada sobre o período, com destaque para os trabalhos de Charles Roberto Silva, Bruno Iury Fracchia e João Roberto Faria, além da documentação primária constituída por decretos, regulamentos, avisos ministeriais e pareceres do Conservatório Dramático Brasileiro. O diálogo com essas pesquisas permite não apenas reconstituir os mecanismos institucionais da política teatral imperial, mas também compreender as tensões entre projeto civilizador e prática autoritária, entre discurso de fomento e realidade de abandono, que atravessam todo o período.


I. Fase de Consolidação Institucional e Centralização (1840–1850)

1. Criação de Estruturas de Controle e Ideologia: o Conservatório Dramático Brasileiro

A instauração do Segundo Reinado, com a antecipação da maioridade de D. Pedro II em julho de 1840, inaugura um período de recomposição da autoridade monárquica após a turbulência do Período Regencial. As revoltas provinciais da década anterior, a Cabanagem, a Balaiada, a Farroupilha, a Sabinada, haviam colocado em xeque a própria continuidade do Império, exigindo da elite política instalada no Rio de Janeiro um conjunto de estratégias que afastasse o risco de fragmentação territorial. Nesse contexto, a cultura é progressivamente enquadrada como peça de um projeto de Estado: mais do que entretenimento, o teatro passa a ser mobilizado como instrumento de pedagogia política, veículo de civilização dos costumes e suporte para a construção de um imaginário de unidade nacional (SILVA, 2017, p. 43-45; FRACCHIA, 2022, p. 19-21).

Não é casual, portanto, que a década de 1840 assista à criação de um conjunto de instituições voltadas à organização da vida cultural e à produção de uma identidade coletiva. O Colégio Pedro II (1837) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838) já haviam sido fundados nos anos finais da Regência, como respostas institucionais à necessidade de formar elites letradas e de escrever uma história nacional. O Conservatório Dramático Brasileiro, criado em 1843, inscreve-se nessa mesma lógica: trata-se de estender ao campo teatral o esforço de normatização e hierarquização da cultura que já se desenvolvia em outras esferas (FRACCHIA, 2022, p. 47-48).

O Conservatório nasce como associação privada de homens de letras que se propunham a organizar o repertório e a vida teatral da Corte. Seus Artigos Orgânicos, aprovados em 1843, desenham um programa nitidamente utilitário para a arte dramática: a instituição deveria "animar e exercitar o talento nacional para os assuntos dramáticos", corrigir "os vícios da cena brasileira" e submeter às luzes da crítica tanto as obras nacionais quanto as estrangeiras, dirigindo os trabalhos cênicos segundo "os grandes preceitos da Arte" (FARIA, 1989, p. 261). O teatro é concebido, assim, como "escola de bons costumes e da língua", espaço de educação moral e de aprimoramento linguístico, em consonância com o projeto civilizador que animava as demais instituições culturais do Império.

A oficialização da função censória do Conservatório ocorre com o Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845, que torna obrigatória a submissão de todos os textos dramáticos e líricos a um juízo prévio do órgão antes de serem apresentados ao Chefe de Polícia para o visto final (FRACCHIA, 2022, p. 47; FARIA, 2001, p. 134). A partir de então, o Conservatório passa a exercer uma censura que se pretende tripla, moral, política e estética, voltada a assegurar, simultaneamente, o respeito à religião e à decência, a lealdade às instituições monárquicas e a melhoria do "gosto" e da própria técnica dramática. A veneração à "Santa Religião", a preservação da moral pública e o respeito aos poderes constituídos aparecem, assim, lado a lado com preocupações quanto à "castidade da língua" e à correção da pronúncia (FARIA, 2001, p. 134-135).

Essa operação desloca parcialmente o eixo do controle. Se, até então, a censura era atributo quase exclusivo da polícia, com o Conservatório ela passa a incorporar o olhar dos literatos, que pretensamente elevam o nível da intervenção, substituindo a simples interdição pela crítica "ilustrada". Na prática, porém, o novo arranjo não elimina a primazia do poder policial. O Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, que executa a Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, havia reafirmado que nenhuma representação poderia ocorrer sem o visto do Chefe de Polícia ou de seus delegados, incluindo a verificação de que o recitado estava conforme o texto aprovado e de que gestos e palavras não ofendiam a decência (SILVA, 2017, p. 255-256; FRACCHIA, 2022, p. 46-47). O Decreto nº 425 acrescenta o crivo do Conservatório, mas mantém a última palavra nas mãos da polícia.

O resultado é uma dupla instância censória que frequentemente entra em conflito. O Conservatório examina o texto, sugere cortes, emendas ou proibições com base em critérios literários, morais e políticos, enquanto a polícia conserva a prerrogativa de autorizar ou vetar a representação e de intervir in loco durante o espetáculo. Casos de peças aprovadas pelo Conservatório e retiradas de cena pela autoridade policial ilustram essa tensão, que levou o próprio governo a tentar, em 1851, delimitar os campos de competência com o Aviso nº 296, sem, contudo, resolver definitivamente a sobreposição de poderes (FRACCHIA, 2022, p. 48-49).

Também do ponto de vista material, a experiência do Conservatório evidencia os limites do compromisso imperial com o teatro. Apesar de oficializar o órgão como instância central da censura, o Estado não o integra plenamente à máquina administrativa nem o dota de financiamento estável. O Conservatório viveu de contribuições de associados e de pequenas ajudas do Executivo, suficientes apenas para "despesas de expediente", e nunca recebeu recursos compatíveis com projetos mais ambiciosos, como a criação de uma escola de teatro ou a manutenção de um periódico (FRACCHIA, 2022, p. 48-49; SILVA, 2017, p. 210-211).

Em síntese, a criação do Conservatório Dramático Brasileiro revela com nitidez a lógica imperial aplicada ao teatro: o Estado centraliza normas, define critérios de ortodoxia e constrói um dispositivo sofisticado de censura moral, política e estética, mas transfere à sociedade civil, neste caso a um grêmio de homens de letras, o ônus material da empreitada. Protege-se, vigia-se e regula-se a cena, sem que se assuma plenamente a responsabilidade pela infraestrutura necessária ao florescimento de uma dramaturgia nacional.


2. Institucionalização da censura: da polícia ao Conservatório Dramático Brasileiro

A institucionalização da censura no Segundo Reinado não corresponde a uma ruptura súbita com o passado, mas a um processo de reorganização de dispositivos que já vinham sendo experimentados desde o período joanino e o Primeiro Reinado. A Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, e o Regulamento nº 120, de 31 de janeiro de 1842, reafirmam o lugar da polícia como instância central de vigilância sobre os teatros: cabia aos chefes de polícia da Corte e das províncias, ou a seus delegados, inspecionar casas de espetáculo, examinar previamente os textos e conceder o visto sem o qual nenhuma representação poderia ocorrer (SILVA, 2017, p. 255–256; FRACCHIA, 2022, p. 46–47). A preocupação enunciada nesses textos normativos é clara: impedir que o palco se converta em foco de desordem moral, religiosa ou política, assegurando que as palavras ditas em cena respeitassem a religião do Estado, a decência pública e as autoridades constituídas.

Ao mesmo tempo, o Regulamento de 1842 explicita que a fiscalização não se limita à letra do texto, estendendo-se à performance. A polícia deve verificar se o recitado corresponde ao manuscrito aprovado e se gestos, atitudes e improvisos dos atores não rompem com os limites da decência (SILVA, 2017, p. 255–256). O teatro é tratado, assim, como um espaço sensível, no qual a materialidade do corpo e da voz produz efeitos políticos e morais que exigem controle permanente. Esse enquadramento reforça a dimensão disciplinar da política teatral imperial: não basta "corrigir" a página escrita, é necessário também vigiar o momento mesmo da representação, onde a palavra ganha corpo diante do público.

É nesse quadro que o Conservatório Dramático Brasileiro, fundado em 1843 como associação de homens de letras, será progressivamente integrado ao sistema de censura, sem, contudo, desalojar a polícia de sua posição de comando. O Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845, formaliza esse arranjo híbrido ao determinar que todos os textos dramáticos e líricos destinados aos teatros da Corte sejam submetidos ao juízo prévio do CDB, antes de serem apresentados ao Chefe de Polícia para o visto final (FRACCHIA, 2022, p. 47–48; FARIA, 2001, p. 134). O Conservatório passa, então, a desempenhar uma censura de caráter literário, moral e estético, ao passo que a polícia mantém a prerrogativa de autorizar a encenação, acompanhar as apresentações e intervir em nome das "conveniências públicas".

O que se institui, portanto, não é a substituição de um aparato por outro, mas uma duplicidade de instâncias que operam em registros diferentes e, muitas vezes, sobrepostos. De um lado, o CDB reivindica para si um "julgamento triplo", moral, político e estético, em consonância com o projeto civilizador do Império: cabe-lhe zelar pela ortodoxia religiosa, pela moralidade e pelos poderes do Estado, mas também pela "castidade da língua" e pelos critérios de boa arte, depurando o repertório e modelando o gosto do público (FARIA, 2001, p. 134–135; FRACCHIA, 2022, p. 47–48). De outro, a polícia conserva o controle sobre a circulação efetiva das peças, podendo vetá-las, suspendê-las ou retirá-las de cartaz, ainda que tenham sido aprovadas pela comissão de literatos.

Os pareceres do Conservatório, tal como analisados por João Roberto Faria, revelam a extensão dessa ambição normativa. Cortam-se passagens consideradas licenciosas, rejeitam-se situações vistas como ofensivas à religião ou à família, reprovam-se alusões a personagens reais, mesmo em tom de galhofa, e desconfia-se de gêneros tidos como "inferiores", como farsas e comédias, por não se coadunarem com a ideia de teatro como escola de costumes (FARIA, 2001, p. 135–136; FARIA, 1989, p. 261–262). A proibição de Beatriz Cenci, de Gonçalves Dias, por tratar de incesto e violência, é frequentemente lembrada como exemplo de uma sensibilidade moral rígida, que procurava higienizar o palco de temas considerados escabrosos (FRACCHIA, 2022, p. 47–48). A operação censória, nesse sentido, não se limita a expurgar ofensas pontuais, mas instaura um horizonte de aceitabilidade artística estreitamente vinculado a um ideal de respeitabilidade burguesa e católica.

Essa arquitetura, porém, é marcada por tensões internas. A exigência de que nenhuma peça seja apresentada ao Chefe de Polícia sem a censura prévia do CDB implica, na prática, um encadeamento de decisões em que a polícia aparece como instância de consagração ou reversão do juízo dos literatos (FRACCHIA, 2022, p. 48–49; SILVA, 2017, p. 256–257). Não surpreende, assim, que conflitos de jurisdição se multipliquem. Peças autorizadas pelo Conservatório são retiradas de cena pela polícia, enquanto outras, que receberam pareceres restritivos, acabam sendo liberadas em função de conveniências políticas ou de pressões externas. Em 1851, o Aviso nº 296, expedido em nome de D. Pedro II, tenta delimitar as esferas: recomenda-se que se respeite o juízo do CDB na parte literária, mas reafirma-se que o Chefe de Polícia pode negar o visto e proibir representações por motivos de ordem pública (FRACCHIA, 2022, p. 48–49).

O caso de As asas de um anjo, de José de Alencar, é emblemático dessa sobreposição de poderes. Embora licenciada pelo Conservatório em 1858, a peça é suspensa pela polícia após a terceira representação, sob a alegação de que seus excessos realistas seriam incompatíveis com a moral e com a decência, evidenciando que a última palavra continuava a caber ao aparelho repressivo, e não ao coletivo de homens de letras (FARIA, 2001, p. 136–137; FRACCHIA, 2022, p. 49). A mesma duplicidade se verifica na prática cotidiana: o CDB pode sugerir cortes e correções, mas é a polícia que controla a materialidade da noite teatral, decide sobre a entrada de público, determina interrupções e, em casos extremos, ordena prisões.

A institucionalização da censura prévia no Segundo Reinado, longe de significar apenas uma racionalização burocrática, consolida um padrão de intervenção em que a arte dramática se vê atravessada simultaneamente por uma moral de Estado e por um projeto de normatização estética. A divisão de competências entre CDB e polícia não atenua o caráter autoritário do dispositivo. Ao contrário, reforça-o, ao combinar o olhar técnico dos literatos com o poder coercitivo da autoridade policial. Mesmo quando o Conservatório é extinto, em 1897, a estrutura básica permanece, e a censura teatral retorna integralmente às instâncias policiais, o que revela a força de longa duração de uma matriz de controle que associa, desde o início do século XIX, o palco à necessidade de vigilância permanente (SILVA, 2017, p. 240–241; FRACCHIA, 2022, p. 46–49).

3. O teatro como arena política

Durante a consolidação do Segundo Reinado, o teatro ultrapassa a função de entretenimento e converte-se gradualmente em uma extensão da esfera pública, um espaço onde tensões sociais, disputas partidárias e contradições institucionais se revelam de modo mais espontâneo e incisivo do que nas arenas formais da política imperial. Desde a chegada da Corte portuguesa, o palco já possuía esse caráter ambivalente, ao mesmo tempo pedagógico e incendiário, funcionando como espécie de ágora urbana em que temas de interesse coletivo eram dramatizados diante de plateias heterogêneas (FRACCHIA, 2022, p. 30–31). No Segundo Reinado, porém, essa dimensão se intensifica, pois o teatro é captado simultaneamente pela ação estatal, que busca discipliná-lo como aparelho de civilização, e pelo impulso crítico dos dramaturgos, que utilizam a cena para expor fissuras do regime.

Esse papel político do teatro emerge com nitidez na obra de Martins Pena, cuja produção dramatúrgica se alinha à própria formação do Estado imperial. Suas comédias constituem um registro privilegiado das contradições do período, revelando o desencontro entre as normas liberais proclamadas pelo discurso oficial e a prática política marcada por clientelismo, arbitrariedade e corrupção. Como observa João Roberto Faria, as peças de Pena traduzem uma "imagem crítica da sociedade brasileira" ao desnudar comportamentos, instituições e valores de maneira francamente satírica (FARIA, 1989, p. 258–260). É o caso de O Juiz de Paz na Roça, escrita entre 1831 e 1833, que dramatiza as tensões do período regencial ao apresentar um magistrado inepto e venal, símbolo de uma autoridade que, em vez de apaziguar conflitos, os reproduz. Ali, a figura do juiz de paz, concebida pelo legislador como instrumento de descentralização e pacificação, surge invertida em sua própria caricatura, expondo a fragilidade da máquina administrativa e a distância entre a norma e a prática (FARIA, 1989, p. 260–262).

A atuação estatal diante desse tipo de dramaturgia revela, por sua vez, a natureza politicamente sensível do palco. A crítica social e institucional presente em Martins Pena gerou resistências tanto no Conservatório Dramático Brasileiro quanto na esfera policial. Há registros de que O Juiz de Paz na Roça enfrentou dificuldades de autorização na Corte por suposta ofensa a funcionários do Império, e que membros do Conservatório consideraram a representação do juiz um "desacato às instituições" (SILVA, 2017, p. 258–259). Não se tratava apenas de uma preocupação moral ou estética, mas de um incômodo profundamente político: o teatro, ao ridicularizar autoridades, tornava-se foco de inquietação pública e instrumento de mobilização da opinião.

Essa mesma tendência reaparece em Os Dous ou o inglês maquinista (1842), em que Pena critica o tráfico negreiro e a conivência do poder público com um sistema ilegal que se prolongava apesar das pressões internacionais e das leis supostamente abolicionistas. O tema era politicamente explosivo, sobretudo em meados da década de 1840, quando o Parlamento se debruçava sobre a repressão ao tráfico, razão pela qual a peça enfrentou escrutínio mais severo das autoridades (FRACCHIA, 2022, p. 48–49; FARIA, 1989, p. 265). A sátira, ao revelar mecanismos de corrupção e acordos ilícitos, tocava em nervos expostos da política imperial, atingindo tanto os agentes do Estado quanto os interesses econômicos das elites.

O que essas peças evidenciam é que, apesar dos esforços de disciplinamento cultural e censório, o teatro manteve sua vocação crítica intrínseca. Esse potencial não escapava aos contemporâneos. Como argumenta Fracchia, a Corte percebia o palco como "ponto nevrálgico de circulação de ideias", capaz de transformar divergências políticas em espetáculo público e, assim, tensionar a própria legitimidade das instituições (FRACCHIA, 2022, p. 31). Não surpreende, portanto, que tanto o CDB quanto a polícia se mostrassem vigilantes diante de qualquer farsa ou comédia cujo enredo pudesse ser interpretado como comentário político, mesmo quando envolvia apenas alusões indiretas ou situações corriqueiras de funcionamento do Estado.

Há também exemplos de interferência política direta, que ilustram a permeabilidade da censura às dinâmicas parlamentares e às rivalidades pessoais. Um caso relatado por Silva envolve a pressão de deputados contra a liberação de uma farsa de Martins Pena, que acabou não autorizada em razão de desavenças com setores do Legislativo (SILVA, 2017, p. 259–260). A censura, assim, não se limita às estruturas formais, mas é constantemente acionada por redes de influência externas, revelando a natureza híbrida, policial, literária e política, do sistema de controle teatral no Império.

Ao mesmo tempo, o palco não apenas critica a política: ele a representa. A metáfora teatral aplicada ao Estado imperial, tão comum na imprensa e na literatura da época, sugere que a própria vida pública funcionava como uma espécie de ficção performativa. As instituições, criadas para garantir ordem, produziam frequentemente desordem. Os discursos liberais conviviam com práticas autoritárias e com a escravidão. A aparência de estabilidade escondia tensões profundas. Como sintetiza Faria, tratava-se de um "jogo de aparências", em que a cena cômica e satírica captava dimensões da realidade com mais precisão do que os discursos oficiais (FARIA, 1989, p. 258–259). O teatro, ao escancarar a hipocrisia e a incoerência do sistema, operava como instância de crítica social, mesmo dentro dos limites que lhe eram impostos.

Assim, a politização da cena nas décadas de 1840 e 1850 revela uma contradição estrutural da política cultural do Segundo Reinado. Ao mesmo tempo em que o Estado pretende transformar o teatro em instrumento de civilização e propaganda institucional, a própria lógica dramática abre espaço para a denúncia dos vícios da administração, dos conflitos de autoridade e da precariedade das estruturas políticas. O palco torna-se, assim, uma arena em que se inscrevem, muitas vezes de maneira mais franca, corrosiva e imediata, os dilemas de um regime que se esforça para parecer estável e moderno, mas que é atravessado por tensões que a comédia, a sátira e o riso popular continuamente desvelam.

II. Fase de Intervenção e Crise Latente (1850–1864)

A década de 1850 inaugura uma fase paradoxal para o teatro brasileiro: ao mesmo tempo em que a estabilidade política parecia consolidada e o país vivia um período de relativa harmonia institucional, aprofundavam-se tensões estruturais no campo teatral, especialmente pela intensificação da presença pessoal de D. Pedro II e pela ausência de iniciativas estatais consistentes para o desenvolvimento de uma cena nacional. O que se observa nesse período não é ruptura, mas rearranjo: preserva-se a lógica anterior do "proteger e vigiar", enquanto novas demandas estéticas e organizacionais tensionam os limites do Estado imperial.

Os documentos reunidos por Charles Roberto Silva mostram que o governo mantinha, nesse período, a mesma arquitetura de controle criada desde o Período Regencial: a polícia continua como instância central do licenciamento e acompanhamento das representações, o Conservatório Dramático Brasileiro permanece formalmente responsável pela censura literária, e as loterias seguem como principal instrumento de fomento indireto, ainda que marcadas por atrasos, desvios e disputas administrativas (SILVA, 2017, p. 255–257; p. 92). Ao mesmo tempo, cresce a visibilidade da intervenção pessoal do imperador, cuja presença constante nas salas de espetáculo, segundo Bruno Fracchia, fazia do soberano "o mais assíduo espectador da Corte" (FRACCHIA, 2022, p. 15). Essa conjunção de estabilização política, controle institucional e intervenção seletiva marca o pano de fundo da crise latente que molda a relação entre Estado e teatro na década que antecede a Guerra do Paraguai.

1. A atuação do Imperador e o patrocínio (o “bolsinho”)

A atuação de D. Pedro II no campo teatral, sobretudo na fase de estabilidade política que antecede a Guerra do Paraguai (c. 1850–1864), precisa ser compreendida a partir da dupla posição do monarca. De um lado, o chefe de Estado, figura pública investida do Poder Moderador. De outro, o indivíduo Pedro de Alcântara, leitor voraz, espectador assíduo e pai-educador. Fracchia mostra que essa duplicidade atravessa todo o período, pois o Imperador aparece simultaneamente como observador minucioso da vida teatral e como autoridade que intervém apenas de forma esporádica em questões estruturais, o que produz um descompasso entre a intensidade da experiência pessoal e a timidez das iniciativas institucionais (FRACCHIA, 2022, p. 23–24).

Os diários do monarca, tal como analisados por Fracchia, evidenciam uma relação contínua com o espetáculo: D. Pedro II acompanha temporadas, comenta encenações, avalia companhias e anota impressões sobre atores e repertórios, conferindo ao teatro lugar de destaque entre suas práticas culturais (FRACCHIA, 2022, p. 23–24). Esse olhar é tudo menos passivo. O Imperador sugere peças, manifesta preferência por determinados gêneros e não hesita em censurar, nos registros privados, a mediocridade de montagens ou a precariedade de determinados elencos. Ao mesmo tempo, contudo, o que se observa, quando se passa da escrita íntima à ação política, é uma postura seletiva: o empenho pessoal não se converte, de forma sistemática, em políticas de fomento ou em proteção duradoura às companhias dramáticas.

É nesse ponto que se insere o problema do famoso "bolsinho do Imperador". Fracchia demonstra que a expressão se consolidou para designar a prática de D. Pedro II de distribuir, com recursos de sua dotação particular, pequenas bolsas de estudo e auxílios a artistas, cientistas e estudantes (FRACCHIA, 2022, p. 59–60). O estudo do conjunto dessas concessões revela, porém, um dado incômodo para a imagem posterior do "monarca-mecenas": a área teatral recebeu um número ínfimo de bolsas, "reduzidas […] a menos de uma dezena" ao longo de todo o reinado (FRACCHIA, 2022, p. 120). Em outras palavras, o "bolsinho" funcionou mais como dispositivo de socorro pontual e de autopromoção simbólica do que como eixo de uma política consistente para o teatro dramático.

A própria distribuição desses auxílios ilustra o contraste entre o interesse geral pelas artes e a preferência hierarquizante por certos gêneros. Fracchia ressalta que o apoio mais sistemático recaiu sobre a música de concerto e, sobretudo, sobre o teatro lírico, com destaque para o célebre patrocínio concedido a Carlos Gomes para estudos na Itália, decisão frequentemente evocada como prova do apreço imperial pela arte (FRACCHIA, 2022, p. 60–63). Ainda que esse gesto se insira em um esforço mais amplo de nacionalização do repertório operístico e de afirmação do Brasil no circuito internacional, ele confirma que a lógica do "bolsinho" favorecia carreiras individuais já reconhecidas, em particular no campo musical, deixando à margem o teatro falado e a formação sistemática de atores nacionais.

O contraste entre intervenção pontual e omissão estrutural é particularmente visível no relacionamento com João Caetano. Fracchia recorda que o Imperador se colocou do lado do ator em conflitos específicos, chegando a apoiar a liberação de repertórios contestados pelo Conservatório Dramático, o que alimentou a imagem de João Caetano como "protegido" de D. Pedro II (FRACCHIA, 2022, p. 65). No entanto, quando o mesmo ator encaminhou, em 1857, um projeto de criação de uma escola de artes dramáticas custeada pelo governo, iniciativa reiterada em 1861 após a visita ao Conservatoire de Paris, a resposta imperial foi o "mais completo silêncio", numa formulação que Fracchia utiliza para sublinhar a recusa em assumir compromissos orçamentários duradouros (FRACCHIA, 2022, p. 53; p. 65). O monarca mostra-se, assim, disposto a intervir em situações específicas, em defesa de artistas que admirava, mas não a patrocinar a institucionalização de uma formação teatral pública nos moldes europeus.

A esfera doméstica reforça essa assimetria entre o plano privado e o público. No interior da família imperial, o teatro ocupa lugar central no projeto educativo das princesas Isabel e Leopoldina. Segundo Fracchia, as jovens encenavam pequenas peças, em especial em francês, a fim de exercitar a pronúncia, a memória e a desenvoltura em público, numa pedagogia que aproximava a Corte brasileira dos modelos burgueses europeus de educação feminina (FRACCHIA, 2022, p. 58). O teatro surge, aí, como instrumento refinado de formação moral, linguística e comportamental, mas confinado ao espaço palaciano, sem desdobramentos diretos na criação de escolas ou programas públicos de ensino dramático para a população em geral.

Quando se observam em conjunto essas dimensões, o espectador atento, o distribuidor seletivo de bolsas, o protetor ocasional de certos artistas e o pai-educador que utiliza o teatro na educação das filhas, o quadro que se desenha é o de uma atuação imperial eminentemente pessoalizada. D. Pedro II participa intensamente da vida teatral enquanto indivíduo letrado, mas, como demonstram os estudos de Fracchia, hesita sistematicamente diante de qualquer medida que implique assumir, em nome do Estado, a responsabilidade pela formação e sustentação de uma cena dramática nacional (FRACCHIA, 2022, p. 24; p. 53; p. 120). A fase de intervenção e crise latente, portanto, não elimina a lógica de "proteger e vigiar" herdada do período anterior. Apenas a reveste de uma camada de cordialidade ilustrada, na qual o gesto benevolente do "bolsinho" convive com a recusa em enfrentar o problema estrutural do teatro como política pública.

2. O Contraste Estético: Realismo, Ópera e a Vitalidade do Teatro Ligeiro

A década de 1850 é menos um cenário de substituição linear de uma estética por outra e mais um campo de tensão entre três vetores que se entrecruzam: o romantismo ainda dominante no Teatro São Pedro de Alcântara, o realismo que se afirma a partir do Ginásio Dramático e a vitalidade persistente dos gêneros cômicos e musicados, que não desaparecem, mas se reconfiguram. Esse triângulo estético só se compreende plenamente se recolocado no interior da política teatral do Segundo Reinado. De um lado, a manutenção da lógica de "proteger e vigiar", com polícia e Conservatório Dramático Brasileiro controlando repertórios. De outro, um padrão de fomento seletivo em que o Estado privilegia o teatro lírico e certas iniciativas "de Corte", deixando o drama realista e a comédia majoritariamente entregues à iniciativa privada e à oscilação do mercado (SILVA, 2017, p. 240–241; p. 255–257; FRACCHIA, 2022, p. 45–47).

A criação do Teatro Ginásio Dramático, em março de 1855, por Joaquim Heleodoro Gomes dos Santos, inscreve-se precisamente nesse contexto. A partir de um levantamento minucioso de repertório e de críticas em jornais como o Jornal do Commercio e o Diário do Rio de Janeiro, João Roberto Faria mostra que o Ginásio surge deliberadamente para concorrer com o São Pedro de Alcântara, então hegemônico e associado à figura de João Caetano, que contava com subvenções do governo imperial e com privilégios de loteria concedidos em nome do interesse nacional de manter um "grande teatro dramático" na Corte (FARIA, 1989, p. 97–99). A novidade do Ginásio não está apenas no repertório, mas também na sua posição frente ao Estado: trata-se de uma empresa privada que busca renovar a cena sem apoio sistemático do poder público, operando sob as mesmas malhas censórias e fiscais que pesavam sobre as demais casas de espetáculo, mas sem participar de forma equivalente dos mecanismos de fomento (SILVA, 2017, p. 206–207; p. 255–256).

Nos primeiros meses de funcionamento, o Ginásio não nasce "realista" de imediato. Faria sublinha que a empresa inicia atividades com comédias de Eugène Scribe e peças de tom leve, estratégia calculada para atrair um público habituado ao repertório romântico e melodramático do São Pedro de Alcântara. A inflexão mais nítida ocorre a partir da montagem de As Mulheres de Mármore, de Théodore Barrière e Lambert Thiboust, em outubro de 1855, quando se inaugura um ciclo de intensa vida teatral marcado pelo prestígio crescente da estética realista. Em torno do Ginásio forma-se então um "movimento" que agrega dramaturgos e críticos jovens, como Quintino Bocaiúva, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis, interessados em experimentar, à maneira francesa, comédias e dramas de costumes ancorados em conflitos familiares, dinheiro, trabalho e ascensão social (FARIA, 1989). A interpretação busca maior naturalidade. Cenários e figurinos aproximam-se dos interiores burgueses contemporâneos. A moral burguesa, longe de ser apenas celebrada, torna-se objeto de problematização dramática. Em termos de política cultural, porém, esse "realismo de tese" não se traduz em reordenamento do apoio estatal: a mesma arquitetura censória e o mesmo sistema de loterias que já vinham da década de 1840 continuam a reger o campo, de modo que a inovação estética ocorre dentro de um quadro institucional estável e fortemente hierarquizado (SILVA, 2017, p. 255–257; FRACCHIA, 2022, p. 46–47).

Nesse cenário, o teatro lírico ocupa um patamar hierarquicamente superior no imaginário do governo. Tanto Silva quanto Fracchia destacam que, aos olhos do Estado imperial, a ópera, em especial a italiana, é percebida como gênero "elevado", capaz de simbolizar civilização, moralidade e prestígio internacional do Império (SILVA, 2017, p. 199–200; FRACCHIA, 2022, p. 113–118). Essa valorização se traduz em práticas concretas: concessão de loterias específicas, autorização para construção de grandes teatros líricos, subvenções e facilidades administrativas concentradas em empresas de ópera, enquanto o teatro falado permanece mais vulnerável às flutuações de bilheteria. A fundação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, em 1857, é o gesto mais emblemático dessa preferência. Como demonstra Fracchia, a Academia foi concebida com dupla finalidade, formar cantores brasileiros e difundir uma ópera "nacional", e beneficiou-se de loterias e de um projeto de novo teatro monumental, configurando uma tentativa de institucionalizar um "teatro de Corte" que servisse à autoprojeção da monarquia (FRACCHIA, 2022, p. 113–118). A encenação de A Noite de São João (1860), com libreto de José de Alencar e música de Elias Álvares Lobo, frequentemente celebrada como primeira ópera nacional de projeção, insere-se nessa política de nacionalização simbólica do repertório lírico.

Contudo, a própria trajetória da Academia revela os limites dessa intervenção estatal. Apesar das loterias autorizadas, a gestão dos recursos foi marcada por atrasos, desvios e conflitos de interesse, a ponto de parte considerável das rendas ser canalizada para o empresário José Amat, gerando a anomalia de "duas diretorias", uma formada por acionistas e outra por conselheiros nomeados pelo Imperador, sem que isso impedisse o colapso financeiro da instituição (FRACCHIA, 2022, p. 117–118). O Decreto nº 2.593, de 12 de maio de 1860, que extingue a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, encerra uma experiência curta de institucionalização do teatro lírico, substituída por empresas particulares igualmente dependentes de loterias e sujeitas às oscilações do mercado. O que permanece é a preferência simbólica e material pelo gênero lírico, mantida, por exemplo, nas bolsas pessoais concedidas pelo "bolsinho" imperial a músicos como Carlos Gomes, em contraste com a ausência de políticas equivalentes para o drama realista e para a formação sistemática de atores (FRACCHIA, 2022, p. 59–63; p. 120).

Esse arranjo repercute diretamente na ecologia dos gêneros. Do ponto de vista da alta crítica oitocentista, a ascensão do realismo no Ginásio é celebrada como avanço moralizador, enquanto a crescente popularidade de operetas, revistas de ano, mágicas e burletas é muitas vezes interpretada como "decadência" do gosto. Machado de Assis, em balanços da década de 1860, lamenta a perda de prestígio do drama sério e associa a frequência aos teatros a simples hábito, ecoando a perspectiva de letrados que viam no recuo de Molière, Victor Hugo e Dumas Filho um sintoma de empobrecimento cultural (FARIA, 2012, p. 201–204). As pesquisas recentes relativizam essa leitura. A própria historiografia organizada por Faria, assim como estudos específicos sobre opereta e revista, insistem que os gêneros cômicos e musicados não configuram mera degenerescência do teatro "literário", mas outro modo, mais híbrido, mais imediatamente comunicativo, de articular crítica social, comicidade e espetáculo (FARIA, 2012, p. 219–223; FERREIRA, 2010, p. 250–260). O "gênero alegre" que se consolida em casas como o Alcazar Lírico, a partir da década de 1850, apropria-se da opereta francesa, da paródia e da revista de atualidade para comentar a política, satirizar costumes e negociar, por meio do riso, tensões que o drama de tese trata de maneira mais grave (FERREIRA, 2010, p. 250–258).

Vista do ângulo da atuação estatal, essa vitalidade do teatro ligeiro é, em certa medida, um efeito colateral da própria política imperial. Ao concentrar os instrumentos mais visíveis de fomento, como subvenções, loterias e projetos de edifícios, no teatro lírico e em algumas iniciativas dramáticas associadas a figuras consagradas, o Estado deixa uma faixa extensa do mercado teatral à mercê de empresários que precisam combinar apelo popular, custos mais baixos e rápida atualização temática. Operetas, revistas e burletas aparecem, nessa chave, como formas adaptadas às condições materiais de produção: exigem elencos versáteis, reciclam melodias conhecidas, exploram a atualidade política como matéria cômica e produzem espetáculos de forte impacto visual sem necessidade de aparatos tão caros quanto os da grande ópera (FERREIRA, 2010, p. 255–260). Ao mesmo tempo, esses gêneros são plenamente alcançados pela dupla censura polícia-Conservatório, que vigia alusões políticas, regula a moralidade e tenta conter excessos considerados escabrosos (SILVA, 2017, p. 255–257; FRACCHIA, 2022, p. 46–49). Ou seja: o Estado não os reconhece como "arte alta" digna de institucionalização, mas não abdica de controlá-los como espetáculos de grande circulação.

Assim, o contraste estético entre realismo, ópera e teatro ligeiro, na fase 1850–1864, não pode ser descrito como oposição simples entre "teatro sério", condenado à extinção, e "gêneros frívolos", triunfantes. O que se delineia é uma reconfiguração dos públicos e das formas sob a mesma matriz de intervenção imperial. O drama realista consolida um repertório de comédias e dramas de tese que dialoga com a imprensa e com a burguesia letrada, mas permanece estruturalmente dependente de empresários privados. O teatro lírico se afirma como vitrine de civilização e objeto privilegiado de fomento, ainda que experiências como a Imperial Academia revelem o amadorismo e os limites da ação estatal. E os gêneros cômicos e musicados, longe de serem mero sintoma de decadência, prolongam, em chave híbrida e musical, a tradição satírica inaugurada por Martins Pena, funcionando como ponte entre o "alto" e o "baixo", entre o programa moralizador do Estado e o riso imediato da plateia (FARIA, 1989, p. 4–6; FARIA, 2012, p. 219–223; FERREIRA, 2010, p. 250–260). Nesse quadro, a intervenção do Estado imperial aparece menos como agente de uma "evolução estética" e mais como força estruturante de hierarquias de prestígio e de acesso a recursos, condicionando, sem determinar por completo, as formas que a cena brasileira pôde assumir na década de 1850.

3. O controle, a dependência e o desprestígio da iniciativa nacional

A consolidação do sistema de censura e vigilância ao longo do Segundo Reinado não apenas condicionou a produção cênica, mas estruturou de maneira profunda a economia política do teatro, produzindo um ambiente em que a criação de instituições dramáticas duradouras dependia, quase sempre, da autorização estatal e da intervenção direta do monarca. Silva demonstra com clareza que a exploração comercial de teatros, casas líricas e companhias dramáticas permanecia vinculada a uma prerrogativa de raiz absolutista: a autorização régia, que conferia a determinados empresários o direito de operar casas de espetáculo, protegendo-os juridicamente da concorrência (SILVA, 2017, p. 92; p. 255–257). Essa lógica, herdada da monarquia portuguesa e transposta ao Brasil, sobrevivia mesmo após a criação do Conservatório Dramático Brasileiro, pois a decisão última sobre a circulação das peças permanecia sob o controle da polícia e, por extensão, da Coroa.

De fato, a censura exercida pelo CDB nunca deslocou o poder de polícia: as companhias dependiam do visto do Chefe de Polícia, que podia vetar textos aprovados pelos literatos ou suspender representações por motivos de ordem pública, moral ou política (SILVA, 2017, p. 255–256; FRACCHIA, 2022, p. 46–49). O teatro, assim, era simultaneamente objeto de proteção simbólica, como signo de civilização, e de suspeição permanente, como espaço sensível onde a palavra pública ganhava corpo e se tornava potencialmente perigosa. A duplicidade entre incentivo retórico e tutela policial configurou-se, ao longo das décadas de 1840 e 1850, como o traço estrutural da política teatral imperial.

Esse mesmo arranjo explicita a dependência do teatro em relação ao Estado no plano material. Como demonstram Silva e Fracchia, o principal instrumento de fomento durante todo o período foi a concessão de loterias públicas, recurso importado da experiência portuguesa do fim do século XVIII e mobilizado como forma indireta de financiamento cultural (SILVA, 2017, p. 206–207; FRACCHIA, 2022, p. 113–115). A loteria funcionava como mecanismo de "mecenato à distância": o Estado não gastava diretamente, mas conferia um privilégio que permitia à empresa teatral arrecadar fundos na sociedade. Contudo, esse fomento era marcado por ineficiência crônica. Fracchia documenta atrasos sistemáticos, manobras políticas e competição feroz no Parlamento para aprovar extrações: em 1857, informava-se ao Imperador que havia mais de 40 loterias atrasadas, impossibilitando o cumprimento das obrigações assumidas em nome de teatros e instituições culturais (FRACCHIA, 2022, p. 114–118). Soma-se a isso o fato de que as loterias eram distribuídas não apenas ao setor teatral, mas também a hospitais, irmandades, obras de caridade e projetos religiosos, o que diluía ainda mais os recursos disponíveis para a cena dramática.

É nesse quadro que se insere o grande fracasso estrutural da década de 1850: a tentativa de construção de um teatro público monumental, apto a consolidar a Corte como centro lírico e dramático do Império. A documentação analisada por Fracchia e por Silva demonstra que o projeto foi inicialmente ambicioso. O Decreto nº 875, de 1856, concedeu cem loterias para a construção de um novo teatro lírico. O Decreto nº 978, de 1858, destinou loterias anuais à Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, reservando as demais para a edificação do teatro monumental (SILVA, 2017, p. 210–211; FRACCHIA, 2022, p. 113–116). Era, em tese, a oportunidade histórica de dotar a Corte de uma casa capaz de abrigar, simultaneamente, o grande repertório lírico e um corpo dramático de referência nacional.

Entretanto, a implementação desses recursos foi rapidamente corroída pela má gestão e por disputas políticas. Como evidencia Fracchia, as loterias destinadas ao novo teatro foram desviadas em grande parte para as empresas líricas controladas por José Amat, que, mediante articulações com parlamentares e membros do governo, conseguiu transferir recursos para seu empreendimento particular e até reivindicar que o terreno fosse formalmente colocado em seu nome (FRACCHIA, 2022, p. 117–118). Criou-se, assim, uma situação paradoxal: a verba supostamente destinada à criação de uma infraestrutura pública de longo prazo acabava fortalecendo interesses privados, sem que isso resultasse em benefício estrutural para o teatro nacional.

A hesitação imperial diante do avanço do projeto agravou o quadro. Os diários de D. Pedro II e as anotações analisadas por Fracchia indicam que o monarca reconhecia a necessidade de um teatro monumental, mas via com profunda reserva o uso das 24 loterias restantes para esse fim. Em 1862, anotou que "não era época para se empregar tais recursos em teatro dramático" e alertou para o risco de "desperdício" do produto das loterias (FRACCHIA, 2022, p. 118–120). A postura imperial oscilava entre o interesse pessoal pela música e pela ópera, que o levava a intervir pontualmente em favor de artistas que admirava, e o receio de assumir compromissos orçamentários duradouros. Esse "silêncio administrativo", visível nas negativas implícitas às propostas de João Caetano para criação de uma escola pública de artes dramáticas, repetiu-se na condução do teatro monumental.

O resultado foi o esvaziamento gradual do projeto. Das cem loterias previstas em 1856, apenas as primeiras vinte foram efetivamente usadas, e apenas para a desapropriação de terrenos (SILVA, 2017, p. 210–211). As demais foram sucessivamente redirecionadas a obras pias, hospitais, projetos religiosos ou simplesmente não executadas. O projeto de um grande teatro público naufragou, e com ele a possibilidade de formar, no século XIX, uma companhia dramática permanente nos moldes da Comédie-Française. Como nota Fracchia, esse fracasso não é acidental: ele expressa o limite estrutural da política teatral do Império, marcada por fomento intermitente, desconfiança em relação ao drama falado e preferência por iniciativas que não implicassem criação de uma instituição pública estável (FRACCHIA, 2022, p. 118–120).

Ao mesmo tempo, essa incapacidade de consolidar uma infraestrutura dramática nacional funcionou como vetor adicional para o desprestígio da iniciativa brasileira frente às empresas estrangeiras de ópera e aos gêneros cômicos e musicados de grande apelo popular. Casas como o Alcazar Lírico passaram a dominar a cena carioca nos anos 1860, oferecendo operetas, paródias e revistas que, além de responderem às condições materiais impostas pelo Estado, ocupavam o espaço deixado pelo teatro dramático privado, frequentemente fracassado por falta de apoio institucional. Assim, a política imperial, ao privilegiar o lírico e negligenciar a cena falada, não apenas condicionou esteticamente o repertório da Corte, mas também contribuiu para uma reorganização do mercado teatral, que reforçava a hegemonia de formas híbridas e populares, sem que isso significasse necessariamente empobrecimento artístico.

Em síntese, o período 1850–1864 revela a profundidade da contradição imperial: o Estado que censura, vigia e regula o teatro é o mesmo que sustenta, por meio das loterias, uma estrutura de fomento precária, permeada por atrasos e desvios, e incapaz de consolidar instituições nacionais de longo prazo. A iniciativa dramática brasileira, dependente de licenças, visto final e autorizações régias, nunca encontrou no Império o ambiente jurídico, econômico e político necessário para florescer como projeto coletivo. A política de "proteger e vigiar", projetada para disciplinar a cena, acabou, paradoxalmente, contribuindo para o seu desprestígio estrutural, deixando o teatro nacional entre o improviso empresarial, o favoritismo lírico e a ausência de um compromisso estatal duradouro.

III. Fase de erosão política (1864–1889)

A partir da Guerra do Paraguai, a relação entre Estado imperial e teatro se inscreve em um quadro de erosão progressiva da legitimidade monárquica. O conflito externo (1864–1870) rompe a longa sensação de estabilidade que marcara o centro do Segundo Reinado e desloca prioridades administrativas: recursos, energia política e capital simbólico passam a ser absorvidos pelo esforço de guerra, reduzindo ainda mais a já frágil capacidade do Estado de investir em instituições culturais duradouras. Simultaneamente, aprofundam-se tensões internas, como a crise escravista, o desgaste do Poder Moderador, as rivalidades partidárias e a ascensão do republicanismo, que corroem a autoimagem de um Estado capaz de conduzir, de cima, um projeto de civilização. Nesse ambiente, o teatro continua a ser objeto de vigilância e regulação, mas a lógica imperial se torna ainda mais desequilibrada: o controle aumenta, enquanto o fomento, já intermitente, praticamente se extingue.

Do ponto de vista estrutural, a década de 1870 não inaugura propriamente um novo modelo de política teatral, mas intensifica tendências presentes desde a Regência. Os dispositivos jurídicos e administrativos que sustentavam a censura, a dupla instância polícia/Conservatório, os avisos ministeriais, a inspeção presencial das salas, continuam vigentes, reafirmando a visão do palco como espaço delicado, de potencial repercussão política e moral. Silva demonstra que essa continuidade institucional implicava, na prática, a preservação do modelo de "vigilância em tempo real" sobre a cena, com a polícia encarregada de verificar não apenas o texto aprovado, mas a performance, o gesto, a entonação, a reação das plateias (SILVA, 2017, p. 255–257). Fracchia observa que, mesmo em meio às crises do pós-guerra, o Estado nunca deixou de conceber o teatro como lugar potencialmente explosivo, uma arena onde a opinião pública se manifestava de maneira mais franca e imediata do que no Parlamento (FRACCHIA, 2022, p. 31–33). O resultado é um regime de controle que se torna mais rígido à medida que a legitimidade do Estado diminui, sinalizando a persistência da lógica imperial de "proteger e vigiar".

Ao mesmo tempo, a cena teatral vivencia transformações profundas. Os estudos de Faria mostram que, já nos anos 1860, o "teatro sério", os dramas de tese e as comédias realistas associadas ao Ginásio Dramático, perde espaço para operetas, revistas e paródias importadas ou adaptadas, que passam a dominar casas como o Alcazar Lírico. Essa mudança não decorre apenas das preferências do público, mas expressa a assimetria estrutural do fomento imperial: enquanto o teatro lírico tem acesso privilegiado às loterias e ao patrocínio simbólico do Estado, as companhias dramáticas dependem quase exclusivamente do mercado. A crise financeira do pós-guerra aprofunda essa desigualdade. Como mostram Fracchia e Silva, a política de loterias, já marcada por atrasos e desvios antes de 1864, praticamente se paralisa na década de 1870, retirando das empresas nacionais a principal fonte de financiamento indireto (SILVA, 2017, p. 210–211; FRACCHIA, 2022, p. 118–120). Assim, a erosão política do regime afeta diretamente a cena: o Estado mantém os mecanismos de controle, mas não oferece condições materiais para a existência de um teatro nacional estável.

1. O declínio da imagem imperial, a reorganização do CDB e o prolongamento do modelo censório

A Guerra do Paraguai precipita uma mudança decisiva na percepção pública de D. Pedro II. A intervenção pessoal do monarca na condução política do conflito, culminando na queda do gabinete Zacarias em 1868, rompe a imagem de imparcialidade do Poder Moderador e inaugura um ciclo de críticas ao chamado "poder pessoal". Embora não seja um fenômeno circunscrito ao campo cultural, essa crise tem efeitos diretos sobre o teatro, entendido por contemporâneos como espaço privilegiado de formação e disputa da opinião pública. Fracchia demonstra que, a partir da segunda metade da década de 1860, o Estado passa a tratar o palco com especial cautela, temendo que a instabilidade política externa e interna se refletisse nas salas de espetáculo e na sensibilidade dos espectadores (FRACCHIA, 2022, p. 31–33).

É nesse clima de tensão que o governo decide reorganizar, em 1871, o Conservatório Dramático Brasileiro. A medida, longe de representar uma renovação estrutural, traduz a tentativa de reafirmar a autoridade moral e estética do Estado sobre a cena num momento de crise. Documentos da época, analisados por Silva, deixam claro que o CDB é encarregado de "restabelecer as normas da arte dramática" e de reforçar a vigilância sobre temas considerados politicamente sensíveis (SILVA, 2017, p. 258–259). A reorganização do CDB não altera, porém, o eixo central do sistema: a polícia conserva a última palavra sobre o que pode ou não subir à cena, e continua responsável pela fiscalização direta das representações (SILVA, 2017, p. 255–256). A duplicidade polícia/Conservatório, já problemática desde 1845, é, portanto, mantida e intensificada.

Nesse mesmo período, críticos como Machado de Assis denunciam o abandono do teatro nacional pelo Estado e reivindicam a criação de um "teatro normal", com companhia estável e escola pública de atores, demanda que ecoa, em chave literária, as frustrações acumuladas pelas companhias dramáticas desde a década de 1850 (FARIA, 1989). Contudo, essa reivindicação esbarra em uma realidade institucional já esgarçada: as loterias que poderiam financiar tal projeto não são executadas, e o Imperador, como demonstra Fracchia, mantém o padrão de intervenção seletiva e pessoal, mas se recusa a assumir compromissos orçamentários permanentes (FRACCHIA, 2022, p. 118–120). Assim, a reorganização do CDB em 1871, longe de inaugurar uma política consistente, apenas reforça o modelo preexistente: o Estado censura, vigia e normatiza, mas não estrutura.

A trajetória posterior do Conservatório confirma essa dinâmica. Entre 1871 e 1889, o CDB alterna períodos de atividade intensa e fases de quase paralisia, sem jamais receber recursos para consolidar projetos próprios ou para criar a escola de artes dramáticas reivindicada desde João Caetano. A queda da monarquia em 1889 encontra o teatro brasileiro sob o mesmo regime de controle construído meio século antes: a censura permanece ativa, a polícia continua a fiscalizar a cena, e o Estado jamais instituiu um "teatro nacional" nos moldes sonhados pelas gerações anteriores.

2. O não-aproveitamento da oportunidade: o mito da “Comédia Brasileira”

No mesmo momento em que o Império atravessava seu ciclo mais agudo de desgaste político, entre a crise do Poder Moderador, o aprofundamento da questão escravista e o avanço das ideias republicanas, consolidou-se, entre escritores e críticos, a percepção de que o teatro brasileiro carecia de uma base institucional sólida que lhe permitisse ocupar, na vida nacional, papel equivalente ao desempenhado pelos teatros públicos europeus. O discurso reiterado por José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Quintino Bocaiúva e Machado de Assis, amplamente documentado por João Roberto Faria, apontava para a necessidade de um teatro público subvencionado, capaz de formar atores, fixar um repertório nacional e garantir continuidade à produção literária dramática (FARIA, 1989). Essa reivindicação, longe de nascer no "ocaso" do Império, já circulava desde meados da década de 1850, mas ganha novo fôlego após a Guerra do Paraguai, quando se torna evidente que o modelo baseado exclusivamente em empresas privadas e loterias irregulares era incapaz de sustentar um teatro de ambições maiores.

É nesse contexto que se deve compreender o projeto da chamada Comédia Brasileira, analisado por Faria (1989) e por Silva (2017). Em 1862, uma comissão nomeada pelo Ministro do Império Sousa Ramos, composta, entre outros, por José de Alencar e Cardoso de Meneses e Souza, propôs a criação de um edifício teatral público, destinado a abrigar uma companhia estável e um repertório selecionado, amparado por subvenção estatal. O modelo era explicitamente inspirado na Comédie-Française, vista pelos contemporâneos como a instituição que harmonizava a formação do gosto, a preservação da língua e a disciplina artística (FARIA, 1989). A proposta incluía, paralelamente, o fortalecimento do Conservatório Dramático Brasileiro como órgão de censura literária e crítica artística, garantindo que o repertório da futura companhia não fosse distorcido por interesses comerciais ou por aquilo que Machado, anos depois, chamaria de "os bárbaros da literatura". Trata-se, portanto, de um projeto que articulava três dimensões: edifício, companhia e corpo crítico, ou, nos termos da época, casa, elenco e gosto, numa tentativa de transplantar para o Brasil um modelo europeu de teatro nacional.

A historiografia recente, especialmente Fracchia (2022), permite, contudo, enxergar o alcance e os limites desse ideal. Se por um lado o projeto da Comédia Brasileira representava a forma mais desenvolvida de intervenção estatal imaginada até então para o setor, por outro esbarrava na própria lógica de funcionamento do Estado imperial. O Império jamais assumira, desde 1822, a manutenção direta de um teatro dramático: toda a política de fomento havia se apoiado, desde o período joanino, no mecanismo indireto das loterias, que tinham como destino prioritário a ópera e instituições pias (SILVA, 2017, p. 206–207). A construção de um teatro público estável exigiria rompimento com essa tradição e compromisso orçamentário contínuo, exatamente aquilo que D. Pedro II evitou sistematicamente ao longo de todo o reinado. Não surpreende, portanto, que a proposta de 1862 tenha sido recebida, no plano oficial, com a mesma inércia que marcara, poucos anos antes, as iniciativas de João Caetano de criar uma escola nacional de artes dramáticas. Fracchia sublinha que o Imperador, embora admirador sincero da arte cênica, manteve silêncio absoluto diante de qualquer projeto que onerasse o Tesouro e implicasse compromisso permanente, comportamento que se repete tanto nos anos 1850 quanto no pós-guerra (FRACCHIA, 2022, p. 118–120).

Ao mesmo tempo, a conjuntura teatral tornava o projeto mais difícil de ser implementado. Como demonstra Faria (1989), desde meados da década de 1860 os gêneros musicados, operetas, paródias e revistas de ano, passaram a ocupar posição dominante na cena carioca, impulsionados pelo sucesso de Offenbach e de companhias francesas que aportavam no Rio. Longe de interpretar essa transformação como mera "degenerescência", Faria mostra que se tratava de um fenômeno estrutural: esses espetáculos ofereciam maior viabilidade econômica, menores custos de produção e apelo imediato num mercado teatral desregulado, no qual a empresa dramática enfrentava crescente dificuldade de competir (FARIA, 1989). A hegemonia do Alcazar Lírico e de casas congêneres, portanto, não é simples sintoma de "decadência do gosto", mas consequência direta da ausência de políticas públicas para sustentar um teatro literário. A crítica de José de Alencar, ao lamentar que a "alta classe" vivesse "à moda de Paris" sem se preocupar com a dramaturgia nacional, expressa mais a frustração com a falta de apoio estatal do que uma oposição real entre "popular" e "erudito".

Nesse quadro, o fracasso da Comédia Brasileira não pode ser atribuído apenas à falta de vontade política circunstancial ou ao desinteresse do público. Ele é expressão da incompatibilidade entre o modelo francês, baseado em privilégio estatal, monopólio de companhia e subvenção contínua, e a estrutura imperial brasileira, fundada em fomento indireto, loterias instáveis, crise fiscal e permanente oscilação entre controle e abandono. Como mostram Silva (2017) e Fracchia (2022), o Estado imperial preferia investir na ópera, associada à civilização e ao prestígio monárquico, e deixava o teatro falado entregue à iniciativa privada, ao improviso de empresários e à volatilidade do mercado. O ideal de uma companhia nacional, capaz de rivalizar com as casas europeias, jamais encontrou condições mínimas de realização. O resultado é que, na década de 1880, mesmo os escritores que mais defenderam o projeto, como Machado e Alencar, reconheciam que o momento histórico havia passado. O teatro brasileiro continuava sem escola, sem companhia estável, sem edifício público e sem política de Estado.

Assim, o mito da "Comédia Brasileira" funciona como síntese das contradições da política teatral do Segundo Reinado: uma elite literária aspirando a um teatro nacional nos moldes europeus, um Estado que mantém rígido controle moral e político mas recusa responsabilidade financeira, e um mercado teatral que, na ausência de apoio institucional, se reorganiza em torno dos gêneros musicados, da comicidade popular e de práticas de produção muito distantes do ideal letrado. Se a oportunidade foi perdida, não foi por falta de projeto, mas por falta de Estado. E é justamente essa ausência, mais do que qualquer suposta "decadência" da cena, que explica por que, às vésperas da República, a dramaturgia brasileira continuava estruturalmente frágil, dependente das oscilações do mercado e das preferências episódicas da elite, sem a sustentação institucional que seus defensores haviam sonhado desde meados do século.

3. Crítica política na cena: a sátira como forma de resistência e denúncia

No ambiente de crescente desgaste do sistema imperial, marcado pela instabilidade ministerial, pelo acirramento da questão escravista e pela multiplicação de fraturas entre o Poder Moderador, os partidos e a opinião pública, a comédia de costumes e a sátira política alcançaram, na década de 1870 e sobretudo nos anos 1880, o seu ponto de maior refinamento e contundência. Tal como mostra João Roberto Faria, o palco brasileiro, longe de constituir mero espaço de entretenimento, tornou-se uma verdadeira arena crítica onde se dramatizavam os impasses da sociedade imperial, frequentemente com mais clareza do que nos próprios debates parlamentares (FARIA, 1989). Se o Estado jamais estruturou uma política teatral capaz de fomentar a dramaturgia literária, como analisado na seção anterior, paradoxalmente foi nesse vácuo que se fortaleceu a crítica satírica, capaz de denunciar os vícios do sistema político com uma eficácia que os instrumentos institucionais não possuíam.

França Júnior é, nesse sentido, figura central para compreender como o teatro reagiu ao enfraquecimento do regime. Embora seus textos pertençam ao universo da comédia e fossem, por vezes, depreciados pelos críticos mais alinhados ao ideal da alta comédia francesa, França Júnior mobilizou a sátira como instrumento de exposição da corrupção eleitoral, da fragilidade dos gabinetes e da promiscuidade entre interesses privados e funções públicas. Em Como se Fazia um Deputado (1882), a crítica ao processo eleitoral imperial é direta: fraude, clientelismo, compra de votos e acomodações familiares aparecem não como desvios, mas como engrenagens estruturais do sistema. A figura do Major Limoeiro, que ajusta casamentos e alianças de acordo com o partido no poder, sintetiza, pela via cômica, o padrão que Fracchia identifica na cultura política do Império: a prevalência dos acordos domésticos e privados sobre qualquer projeto nacional consistente (FRACCHIA, 2022, p. 141–143).

O mesmo se verifica em Caiu o Ministério! (1882), sátira ao colapso sucessivo dos gabinetes e ao mecanismo de nomeações baseado no apadrinhamento e não na capacidade. A peça dramatiza, pelo riso, aquilo que Silva (2017) analisa em chave documental: a instabilidade ministerial como sintoma de um Estado que, apesar de sua retórica de ordem e civilização, não possuía instituições suficientemente sólidas para sustentar um projeto nacional de longo prazo (SILVA, 2017, p. 211–212). Ao transformar esse quadro em matéria teatral, França Júnior não apenas critica a fragilidade política, mas revela a própria teatralidade da vida pública imperial, um jogo de aparências no qual o rodízio dos ministros, longe de significar alternância de projetos, apenas expunha a precariedade das estruturas administrativas.

Essa percepção de que o Império funcionava como uma espécie de "teatro de sombras", imagem recorrente na crítica da época, articula-se com o diagnóstico historiográfico de Faria (1989) e Fracchia (2022). Para ambos, as décadas finais do Segundo Reinado foram marcadas por uma crescente dissociação entre discurso e prática. Pregava-se liberalismo, mas mantinha-se a escravidão. Falava-se em ordem institucional, mas reproduziam-se mecanismos privados de mando. Exaltava-se a civilização europeia, mas o Estado era incapaz de institucionalizar um teatro nacional, um conservatório ou sequer uma companhia estável. A sátira dramatiza esse hiato estrutural: ao expor a contradição, não apenas diverte, mas desmonta o próprio ritual político que pretendia naturalizar tais incoerências.

Importa notar que o reforço da crítica satírica não corresponde a um abandono da tradição realista identificada por Faria no Ginásio Dramático, mas antes a sua reconfiguração. A comédia política dos anos 1870–1880 herda do realismo a atenção às práticas sociais, ao cotidiano e aos conflitos morais da vida burguesa, mas desloca o eixo do drama privado para a denúncia das estruturas coletivas, como fraude, nepotismo, eleitoralismo e bacharelismo, que caracterizavam a política imperial. Essa continuidade é visível tanto na construção dos personagens quanto no uso da linguagem coloquial e na insistência na crítica moral, elementos que Faria identifica como traços centrais do realismo brasileiro (FARIA, 1989, p. 5–9).

A força dessa produção é ainda mais significativa quando se considera o contexto de omissão estatal. Como demonstram Fracchia (2022) e Silva (2017), o Estado Imperial manteve, até o fim, uma política teatral ambígua: controlava, censurava, autorizava e intervinha ocasionalmente, mas se recusava a financiar ou institucionalizar qualquer estrutura duradoura para o teatro falado. Essa combinação de vigilância e abandono, que a seção II.3 mostrou de forma contundente, criou o ambiente em que a sátira floresceu: livre o suficiente para apontar os vícios do regime, mas desprovida do amparo institucional que poderia transformá-la em parte de um projeto cultural nacional.

Ironia histórica: os gêneros que mais denunciaram as contradições do Estado eram justamente aqueles que o próprio Estado e parte da elite consideravam "inferiores". Ainda assim, foram esses gêneros, a comédia de costumes e a sátira política, que melhor captaram e expuseram o processo de esvaziamento das instituições imperiais. O palco tornou-se o lugar onde o Estado era desnudado, onde a retórica da civilização deixava ver suas fissuras, e onde a crise do Império ganhava forma, voz e plateia.

Assim, a crítica política no teatro das décadas finais do Segundo Reinado não apenas acompanhou a erosão das estruturas imperiais: ela a interpretou, a dramatizou e a denunciou. Num regime em que a ação estatal no teatro era tímida, fragmentada e frequentemente contraditória, coube à sátira, e não ao Estado, dar coesão narrativa ao declínio.

Considerações Finais

O percurso traçado ao longo deste texto permite identificar, na política teatral do Segundo Reinado, a consolidação e o aprofundamento de um modelo de intervenção estatal cuja gênese remonta ao período joanino e ao Primeiro Reinado. Entre 1840 e 1889, o Império não rompeu com a lógica do "proteger e vigiar" herdada das décadas anteriores; antes, sofisticou seus mecanismos de controle, com a criação do Conservatório Dramático Brasileiro e a institucionalização da censura prévia, sem jamais assumir a responsabilidade pela construção de uma infraestrutura teatral pública capaz de sustentar o projeto de "teatro nacional" que dramaturgos, críticos e homens de letras reivindicaram ao longo de todo o período.

A primeira fase (1840-1850), marcada pela consolidação institucional e pela centralização política do pós-Regência, viu nascer o Conservatório Dramático como peça central de um dispositivo de controle que pretendia articular censura moral, política e estética. A dupla instância censória, Conservatório e polícia, configurou um arranjo híbrido em que o olhar "ilustrado" dos literatos se sobrepunha, sem anular, à vigilância policial herdada do período anterior. O teatro foi enquadrado como instrumento de pedagogia social e veículo de civilização, mas o Estado transferiu à sociedade civil o ônus material da empreitada, recusando-se a financiar de forma estável a instituição que ele próprio oficializara.

A segunda fase (1850-1864), de aparente estabilidade política, revelou-se paradoxalmente uma fase de crise latente para o teatro. A atuação de D. Pedro II, espectador assíduo, distribuidor seletivo de bolsas pelo "bolsinho" imperial, protetor ocasional de artistas, caracterizou-se pela intervenção pessoalizada e pela recusa sistemática em assumir compromissos orçamentários duradouros. O contraste entre o prestígio concedido ao teatro lírico e o abandono do teatro falado evidenciou a hierarquia de gêneros que orientava a política cultural imperial. O projeto de um teatro público monumental naufragou em meio a desvios de recursos, má gestão e hesitação imperial, enquanto o Ginásio Dramático e o movimento realista floresciam à margem do apoio estatal, dependentes exclusivamente da iniciativa privada e das oscilações do mercado. A vitalidade dos gêneros cômicos e musicados, como operetas, revistas e paródias, não constituiu mera "decadência do gosto", mas resposta estrutural às condições materiais de produção impostas pela ausência de políticas públicas para o teatro falado.

A terceira fase (1864-1889), de erosão política do regime, assistiu à intensificação do controle censório em um contexto de crescente fragilidade institucional. A Guerra do Paraguai deslocou prioridades e recursos, enquanto a crise do Poder Moderador, o acirramento da questão escravista e a ascensão do republicanismo corroíam a legitimidade da monarquia. O projeto da "Comédia Brasileira", acalentado por gerações de dramaturgos e críticos como forma de dotar o país de uma companhia estável nos moldes da Comédie-Française, esbarrou na incompatibilidade estrutural entre o modelo francês e a realidade institucional do Império. Paradoxalmente, foi nesse ambiente de omissão estatal que a sátira política alcançou seu ponto de maior refinamento: as comédias de França Júnior, ao denunciarem a fraude eleitoral, o clientelismo e a instabilidade ministerial, expuseram, pela via do riso, as contradições de um regime que se esvaziava. O palco tornou-se o lugar onde o Estado era desnudado, e coube à sátira, não ao poder público, dar coesão narrativa ao declínio.

O legado do Segundo Reinado para a história do teatro brasileiro é, assim, profundamente ambivalente. De um lado, o período consolidou uma tradição de controle estatal sobre a cena, compreendendo censura prévia, vigilância policial e fiscalização de repertórios, que atravessaria a República e chegaria, em diferentes configurações, até o século XX. A extinção do Conservatório Dramático em 1897 não eliminou essa matriz: a censura retornou integralmente às instâncias policiais, confirmando a força de longa duração de um modelo que associava o palco à necessidade de vigilância permanente. De outro lado, o Império deixou como herança negativa a ausência de instituições teatrais públicas duradouras. O sonho de uma companhia nacional, de uma escola de artes dramáticas, de um edifício público destinado ao teatro falado, reivindicações que atravessaram todo o período, permaneceu irrealizado. A dramaturgia brasileira chegou à República estruturalmente frágil, dependente do improviso empresarial, do favoritismo lírico e das preferências episódicas da elite, sem a sustentação institucional que seus defensores haviam sonhado desde meados do século.

Entre o modelo francês invocado como horizonte civilizatório e a realidade institucional efetivamente construída, o abismo permaneceu intransponível. O Estado imperial desejou os frutos simbólicos de uma cultura teatral florescente, signo de civilização, ornamento do trono, prova de refinamento nacional, mas não esteve disposto a arcar com os recursos necessários para edificá-la de forma consistente. Reivindicou para si o direito de censurar e vigiar, mas recusou-se a sustentar. Os ônus do controle foram assumidos integralmente; os custos do fomento, transferidos à sociedade e aos empresários privados. Esse arranjo assimétrico, muito controle e pouco investimento direto, não foi acidente de percurso, mas expressão das contradições mais amplas de um regime que aspirava à modernidade europeia sem abrir mão das estruturas de poder herdadas do Antigo Regime e da ordem escravista.

Compreender essa configuração histórica é indispensável para interpretar os desenvolvimentos posteriores da cena nacional. A República não partiu do zero: herdou do Império tanto a matriz censória quanto a ausência de políticas públicas consistentes para o teatro. As tensões entre arte e poder, entre liberdade de criação e controle estatal, entre discurso de fomento e prática de abandono, que ainda atravessam a vida cultural brasileira, encontram nesse período suas raízes mais profundas. O Segundo Reinado, longe de constituir mera etapa superada, permanece como matriz de problemas que a história subsequente não resolveu, e cujos ecos ainda se fazem ouvir.

Referências:

FARIA, João Roberto. História do teatro brasileiro – volume I: Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XIX. São Paulo: Perspectiva; SESC, 2012.

FARIA, João Roberto. História do teatro brasileiro – volume II: Do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2014.

FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001.

FARIA, João Roberto. O teatro realista no Brasil: 1855–1865. 1989. Tese (Doutorado em Letras) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.

FERREIRA, A. A. Teatro ligeiro cômico no Rio de Janeiro: a década de 1930. 2012. Tese (Doutorado) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

FERREIRA, A. A. Trianon: história, cena e recepção. 2015. Tese (Doutorado) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

FRACCHIA, Bruno Iury. A atuação de D. Pedro II no teatro e na ópera do Segundo Reinado. 2022. Dissertação (Mestrado) — ECA-Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.

SILVA, Charles Roberto da. D. Pedro II e o teatro praticado no Brasil: 1840–1871. 2017. Tese (Doutorado) — ECA-Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.


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