Proteger e vigiar: a política teatral do Estado brasileiro em formação (1808-1831)

Adriano de Assis Ferreira
São Paulo, 2025
Editora Pensamento Crítico
(Coleção Teatro Ligeiro)
ISBN 978-65-989965-1-2

Introdução

A relação entre Estado e teatro no Brasil possui raízes que remontam às primeiras décadas do século XIX, quando a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1808) inaugurou uma nova fase na vida cultural da colônia. Entre a chegada de D. João VI e a abdicação de D. Pedro I (1831), foram lançados os alicerces de um modelo de intervenção estatal sobre a atividade teatral que perduraria, em suas linhas fundamentais, por todo o período imperial e deixaria marcas duradouras na história cultural brasileira.

Este texto examina a configuração dessa relação durante o período joanino (1808-1821) e o Primeiro Reinado (1822-1831), investigando os mecanismos de financiamento, as estruturas de controle e as concepções ideológicas que orientaram a política teatral do Estado brasileiro em formação. A escolha do recorte cronológico justifica-se por seu caráter fundacional: foi nessas décadas que se estabeleceram os paradigmas institucionais (loterias como instrumento de fomento, censura policial como mecanismo de controle, teatro como vitrine de civilização e legitimação monárquica) que moldariam a cena nacional nas décadas subsequentes.

A análise parte de uma constatação aparentemente paradoxal. Por um lado, os documentos oficiais do período invocavam com frequência o modelo francês, particularmente a Comédie-Française, como horizonte civilizatório a ser alcançado. Por outro, as instituições efetivamente criadas distanciavam-se radicalmente desse paradigma: ao invés de companhias públicas com elencos estáveis e repertório patrimonial, o Brasil desenvolveu um sistema de fomento indireto a empresários privados, combinado com vigilância policial permanente. Entre o modelo invocado e a realidade construída, havia um abismo que o discurso oficial preferia não reconhecer.

Para compreender essa configuração, o texto percorre três momentos. A primeira seção examina os antecedentes europeus e portugueses do modelo adotado no Brasil, contrastando a tradição francesa de proteção estatal direta com o sistema português de financiamento via loterias e controle censório, estabelecido pelo Alvará de 1771. A segunda seção analisa o período joanino, investigando a construção do Real Teatro São João, os mecanismos de financiamento e censura, a importação de companhias europeias e a consequente marginalização dos artistas negros e mestiços que haviam dominado a cena colonial. A terceira seção dedica-se ao Primeiro Reinado, examinando a continuidade do patrocínio imperial, a intensificação dos conflitos políticos no palco e o endurecimento da censura policial em resposta às tensões do período.

A tese que orienta a análise sustenta que o modelo brasileiro de relação entre Estado e teatro caracterizou-se, desde sua gênese, por uma ambivalência constitutiva: fomento material acompanhado de controle ideológico, proteção às artes combinada com vigilância sobre os artistas, discurso civilizatório legitimando práticas autoritárias. Essa ambivalência não era acidental, mas refletia as contradições mais amplas de uma sociedade que aspirava à modernidade europeia sem abrir mão das estruturas de poder herdadas do Antigo Regime e da ordem escravista. Compreender essa gênese é indispensável para interpretar os desenvolvimentos posteriores da cena nacional e para reconhecer, nas tensões entre arte e poder que ainda atravessam a vida cultural brasileira, os ecos de um arranjo gestado nos primeiros anos do Oitocentos.

As fontes mobilizadas incluem a historiografia especializada sobre o período, com destaque para os trabalhos de João Roberto Faria, Décio de Almeida Prado e Charles Roberto Silva. O diálogo com pesquisas recentes, como o artigo de Mariana Soutto Mayor sobre as transformações do trabalho teatral no período joanino, permitiu incorporar perspectivas que problematizam os marcos tradicionais da historiografia do teatro brasileiro, atentando para dimensões frequentemente negligenciadas, como a presença de artistas negros e mestiços na cena colonial e sua progressiva exclusão após 1808.

I. Antecedentes

A gênese do debate sobre a fundação de um teatro nacional no Brasil oitocentista, sustentado por homens de letras como Machado de Assis e Artur Azevedo, encontra seu principal paradigma ideal na França, mais especificamente no modelo de proteção estatal à arte dramática representado pela Comédie-Française. Essa instituição, emblemática no imaginário teatral ocidental, foi estabelecida por Luís XIV em 1680, não primariamente por razões estéticas ou literárias, mas como resultado de um projeto político de centralização e controle da atividade teatral parisiense.

O monarca francês, ao unificar as duas últimas trupes rivais de Paris, a de Molière (então sediada no Hôtel de Guénégaud, após a morte do dramaturgo em 1673) e a do Hôtel de Bourgogne, e conceder o monopólio da representação em francês ao novo elenco real, tinha como propósito assegurar influência política e rigoroso controle sobre os espetáculos. O monarca concedeu também o direito de uso exclusivo de todo o repertório dramático em língua francesa.

A Comédie-Française consolidou-se como um modelo de teatro público subvencionado e permanente, cuja função histórica era preservar a herança dramática nacional (Molière, Corneille, Racine), projetando a glória e o poder da França pelo mundo. Na visão francesa, a arte estava a serviço do Estado, sendo um instrumento para a difusão da civilização.

A Comédie-Française, ou "Casa de Molière", era um santuário da cultura francesa, concebida para participar da construção simbólica de uma sociedade ideal, expondo valores e princípios de moral e decoro que deveriam ser apreendidos pela população.

No entanto, o modelo francês, ao ser transplantado para Portugal, sofreu transformações significativas em sua execução, ainda que mantivesse o propósito ideológico subjacente.

A Apropriação em Portugal: O Alvará de 1771

A influência francesa no campo das políticas culturais foi assimilada em Portugal durante o governo do Marquês de Pombal (1750-1777), sob o reinado de D. José I. Este período foi marcado por reformas que buscavam a modernização do Estado português, empregando estratégias sistematizadas à moda do reinado de Luís XIV.

O Alvará de 17 de julho de 1771 é a primeira legislação centralizada a normatizar os teatros públicos do reino. Motivada pelo ideário iluminista português, a legislação defendia o teatro como um "estabelecimento de teatros públicos bem regulados", fundamental para o esplendor e a utilidade das nações, visto como uma escola onde o povo aprenderia máximas de política, moral e fidelidade aos soberanos. O teatro, portanto, era concebido como ferramenta didática e moralizadora, essencial para a coesão social e a propagação das glórias da dinastia de Bragança.

Apesar de inspirar-se na ideia de um teatro institucionalizado, o modelo português distinguia-se do francês por ser menos centralizador. Em vez de um monopólio real com pagamento direto pelo tesouro, a política pombalina para o teatro estava estritamente vinculada à iniciativa privada. O Alvará de 1771 não colocava recursos da fazenda real à disposição da atividade teatral; em vez disso, a gestão dos teatros era confiada a "homens de negócio" da Praça de Lisboa, que se tornavam parceiros do Rei, recebendo benefícios e autorizações (como a concessão de loterias e a exploração comercial) para gerir os espaços, desde que mantivessem a atividade e respeitassem as regras de moralidade.

Contudo, a lógica do financiamento, baseada na bilheteria e no mecenato privado, mostrou-se pouco frutífera, levando empresários à falência na década de 1790. Por essa razão, D. João (ainda Príncipe Regente) passou a conceder benefícios de loterias e casas de sorte para auxiliar as finanças dos teatros públicos.

O que se depreende é que, mesmo com a apropriação do discurso civilizatório francês, Portugal desenvolveu um modelo de financiamento indireto e de fomento a empresários (enquanto proprietário dos edifícios e concedente de privilégios), mantendo a produção teatral sob o controle da censura, inicialmente exercida pelo Estado laico de Pombal.

O Estado português, em sua função controladora, regulava os preços dos bilhetes, concedia isenções alfandegárias para artigos estrangeiros e exercia o controle policial sobre a cena, os artistas e o público. Este controle policial era uma das funções centrais, ao lado da moralização do repertório.

Este modelo de envolvimento estatal, focado na moralização e na fiscalização policial, foi o que se transplantou para o Brasil com a chegada da Corte em 1808.

II. A Corte no Brasil (1808-1821)

A chegada da Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, forçada pela invasão napoleônica, significou o fim do estatuto colonial e o início de uma reestruturação radical do tecido social e institucional do Brasil. Esta transferência foi crucial para a história nacional, sendo considerada a causa fundamental para a preservação da unidade territorial brasileira, em contraste com a fragmentação que acometeu as colônias hispânicas vizinhas.

Com o estabelecimento da corte, migraram para o além-mar as instituições portuguesas e toda a máquina burocrática do Estado. Esse processo culminou na criação de uma série de aparelhos institucionais e intelectuais: faculdades, imprensa (com a Imprensa Régia), bancos (como o Banco do Brasil, fundado em 1808), a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico, entre outros. O Rio de Janeiro, que em 1808 contava com aproximadamente 60 mil habitantes (uma das cidades mais populosas do império português), transformou-se rapidamente na capital de facto do mundo lusitano.

Neste contexto de modernização forçada e "promoção das luzes", a atividade teatral na capital do vice-reino colonial, até então marcada pela "precariedade e pelo amadorismo" segundo os críticos da época, adquiriu um novo status. A Família Real, acostumada ao entretenimento de Lisboa, onde frequentava o Real Teatro São Carlos, inaugurado em 1793, demandou a construção de um palco à altura de sua presença, dando início a uma política pública que formataria a cena brasileira por todo o século XIX.

1. O Teatro como Símbolo de Civilidade e Poder

A primeira manifestação da nova política cultural do Príncipe Regente D. João no que tange ao teatro ocorreu por meio do Decreto de 28 de maio de 1810. Neste documento, o monarca reconheceu a necessidade de que "nesta capital [...] se erija um teatro decente e proporcionado à população e ao maior grau de elevação e grandeza em que hoje se acha pela minha residência nela".

O pequeno e modesto Teatro de Manuel Luís, também conhecido como Casa da Ópera, principal espaço cênico em atividade na cidade desde 1776, tornava-se insuficiente e inadequado para as demandas da Corte. Com capacidade para cerca de 300 a 400 espectadores, a Casa da Ópera não comportava os rituais da sociedade de corte nem oferecia o esplendor exigido pela presença real.

A Construção do Real Teatro São João

O novo edifício, o Real Teatro São João, foi erguido por iniciativa de Fernando José de Almeida, comerciante português que doou o terreno situado defronte à Igreja da Lampadosa. A Coroa colaborou com a isenção de tarifas alfandegárias para materiais de construção importados e concedeu sete loterias para o levantamento de recursos financeiros, seguindo a prática já consolidada em Portugal desde a década de 1790.

O sistema de loterias, instrumento central do financiamento teatral no Brasil imperial, merece atenção. A primeira loteria concedida para o Real Teatro São João, em 1811, consistia em 8.000 bilhetes vendidos a 8$000 réis cada. Os prêmios eram distribuídos de forma piramidal: o primeiro lugar recebia 10:000$000 réis, havia 2.350 prêmios menores de 12$000 réis, e cerca de 5.324 bilhetes (aproximadamente 70%) saíam "em branco", sem premiação. Esse mecanismo, originário da Inglaterra e difundido pela Holanda, Itália e França antes de chegar a Portugal em 1797, permitia ao Estado arrecadar recursos sem dispêndio direto do tesouro, transferindo o ônus para a população que adquiria os bilhetes.

O projeto arquitetônico foi confiado a José da Costa e Silva, o mesmo arquiteto responsável pelo Real Teatro São Carlos de Lisboa. A escolha não era casual: pretendia-se reproduzir nos trópicos o modelo das grandes salas de ópera europeias, com seu característico formato de ferradura, palco italiano e hierarquia espacial que espelhava a estratificação social. O Real Teatro São João possuía capacidade para aproximadamente 1.020 pessoas na plateia e 112 camarotes distribuídos em ordens sobrepostas, uma estrutura três vezes maior que a antiga Casa da Ópera de Manuel Luís.


A Inauguração e seu Simbolismo Político

A inauguração ocorreu em 12 de outubro de 1813, data escolhida por coincidir com o aniversário do Príncipe D. Pedro, futuro Imperador do Brasil. Este simbolismo calendário reforçava a função política e de legitimação dinástica que o teatro possuía para a Casa de Bragança.

A programação da noite inaugural foi cuidadosamente concebida para celebrar a monarquia. O drama lírico O Juramento dos Numes, de Gastão Fausto da Câmara Coutinho, com música de Marcos Portugal (compositor português que ocupava o cargo de diretor artístico do teatro, ostentando o título de Barão d'Alamiré), apresentava um teor encomiástico e laudatório aos feitos recentes da monarquia portuguesa. A obra transformava a transferência da Corte, que poderia ser vista como fuga diante da invasão napoleônica, em uma gesta heroica, louvando D. João VI como um novo Ulisses. Completava o espetáculo o drama O Combate do Vimeiro, que celebrava a vitória luso-britânica sobre as tropas francesas em Portugal.

O pano de boca do teatro, elemento cenográfico de grande visibilidade, representava a entrada da Família Real na barra do Rio de Janeiro, mais uma vez convertendo o exílio forçado em narrativa triunfal. Nos dias de gala, o interior do teatro era ornamentado com sedas, flores, arandelas, lustres e cortinas encarnadas com franjas de ouro, compondo um cenário de opulência destinado a impressionar os súditos e afirmar o poder real.

O Teatro como "Escola de Costumes"

A construção e inauguração do Real Teatro São João lançaram as bases de uma política que concebia a arte teatral com propósitos nitidamente educativos e moralizadores, ideologia que seria dominante durante o Primeiro Reinado e boa parte do século XIX. O palco era entendido como "escola de costumes", expressão recorrente nos documentos da época, e o governo buscava impedir peças que contivessem potenciais afrontas ao decoro da plateia, às autoridades constituídas e aos seus ideais de moralidade.

Essa concepção utilitária do teatro não era exclusividade brasileira, mas derivava diretamente do pensamento ilustrado europeu, que via nas artes cênicas um instrumento de pedagogia social. O Alvará português de 1771 já estabelecia que o teatro deveria ensinar ao povo "máximas de política, moral e fidelidade aos soberanos". No Brasil, essa doutrina foi transplantada e adaptada às necessidades de legitimação de uma monarquia em terra estranha, cercada por uma população majoritariamente escravizada e por elites locais cuja lealdade precisava ser continuamente cultivada.

O teatro funcionava, assim, como espaço de negociação simbólica entre a Coroa e seus súditos. A presença da Família Real nos camarotes centrais, em posição elevada e visível a todos, transformava cada espetáculo em ritual de afirmação do poder. O público, por sua vez, tinha a oportunidade de demonstrar sua fidelidade por meio de aclamações e vivas, ou, eventualmente, de manifestar descontentamento, como ocorreria com maior frequência nas décadas seguintes.

A tônica moralizadora e legitimadora manteve-se ao longo de todo o período joanino, sendo o teatro utilizado pela dinastia de Bragança como espaço privilegiado de exaltação dos monarcas. Um exemplo eloquente dessa simbiose entre palco e poder ocorreu em 1818, quando o casamento de D. Pedro com a Arquiduquesa Leopoldina da Áustria foi celebrado com récitas de gala no Real Teatro São João, ocasião em que Joaquim Antônio Estrela apresentou o drama O Himeneu, composto especialmente para as festividades.

2. A Importação Artística e a Marginalização dos Artistas Locais

A presença da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro (1808-1821) e o consequente Decreto de 1810, que exigia a construção de um "teatro decente", inauguraram um período de intensa importação artística e estrutural. Esse processo traduziu-se numa verdadeira europeização da cena teatral brasileira, fenômeno que alterou profundamente a composição social dos palcos e as hierarquias do mercado de trabalho artístico.

O teatro brasileiro, em seus primórdios sob a égide joanina, dependeu extremamente de Portugal. De lá provinham o repertório (peças originais ou traduzidas do francês e do italiano), os artistas de maior prestígio, os técnicos especializados e, inicialmente, a maior parte do público letrado, composto em boa medida pelos expatriados que haviam fugido das tropas de Napoleão e que traziam consigo o hábito de frequentar os teatros lisboetas.

A Política de Importação de Companhias e Artistas

A política de fomento real, sustentada pela concessão de loterias e isenções fiscais, garantiu a vinda de companhias dramáticas de Portugal com artistas já renomados nos palcos europeus. Mariana Torres, uma das mais célebres atrizes portuguesas de sua geração, chegou ao Rio de Janeiro entre 1812 e 1813 com sua companhia, visando tirar partido das oportunidades abertas pela presença da Corte. Victor Porfírio de Borja, outro nome de destaque da cena lisboeta, também atravessou o Atlântico nesse período, atraído pelas perspectivas de um mercado teatral em expansão.

Essa imigração de profissionais (portugueses, italianos e franceses) incluiu não apenas atores e atrizes, mas também músicos de orquestra, cantores líricos, bailarinos, cenógrafos, maquinistas de cena e pintores de telões. A contratação sistemática de elencos estrangeiros para as companhias do Real Teatro São João estabeleceu o que Décio de Almeida Prado chamou de "continuidade profissional": um fluxo constante de artistas formados na tradição europeia que garantia padrões técnicos e repertório atualizados.

A própria materialidade do Real Teatro São João exigia essa importação de mão de obra especializada. O edifício, inspirado arquitetonicamente no Real Teatro São Carlos de Lisboa, seguia o padrão das grandes salas de ópera europeias, com seu palco italiano dotado de maquinaria sofisticada (urdimento, alçapões, varas de cenário, sistemas de iluminação a azeite e, posteriormente, a gás) cuja operação demandava técnicos familiarizados com aquela tecnologia, então inexistente no Brasil. O Real Teatro São João representava, assim, a imposição do modelo sociopolítico e cultural português na nova capital do reino, funcionando como uma extensão institucional da metrópole nos trópicos.

A Cena Colonial Antes de 1808

Em contraste com essa nova estrutura europeizada, o teatro que existia no Rio de Janeiro antes da chegada da Corte, representado sobretudo pela Casa da Ópera de Manuel Luiz Ferreira, ativa desde 1776, era caracterizado por representações tidas como "medíocres" pelos críticos da época e pelo que eles denominavam "amadorismo". Essa avaliação, contudo, deve ser relativizada: tratava-se de um juízo emitido a partir dos parâmetros europeus que a Corte trazia consigo, e que desqualificava formas teatrais adaptadas às condições locais.

A cena colonial possuía uma característica singular e crucial, frequentemente ignorada pela historiografia tradicional: a maior parte de seus artistas, incluindo atores, músicos, maquinistas e pintores de cenários, era composta por luso-brasileiros, muitos deles negros e mestiços. A presença constante de mulatos nos elencos configurava uma especialização profissional peculiar, ligada, em parte, ao descrédito em que era tida a profissão de ator na sociedade colonial. Como observou Décio de Almeida Prado, essa desvalorização tornava a carreira teatral atraente apenas para as camadas mais pobres da população, para quem o palco representava uma das poucas vias de ascensão social, especialmente para mulheres, às quais outras profissões de maior prestígio estavam vedadas.

O padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), compositor mulato que ocupou o cargo de mestre de capela da Catedral do Rio de Janeiro, é exemplo emblemático dessa configuração social das artes no período colonial. Embora atuasse primariamente na música sacra, sua trajetória ilustra como artistas negros e mestiços haviam conquistado posições de destaque no cenário cultural carioca antes de 1808, posições que seriam progressivamente ameaçadas pela chegada da Corte e de seus artistas europeus.

A Reestruturação do Mercado e a Exclusão

A transferência da Corte em 1808 reverteu essa dinâmica. O projeto do "teatro decente" visava elevar a atividade teatral ao status de símbolo de civilidade, alinhando-a aos padrões europeus. Com a valorização social da profissão, agora vinculada aos rituais da monarquia e frequentada pela elite cortesã, e a chegada massiva de profissionais estrangeiros, iniciou-se um processo de reestruturação do mercado teatral que teve consequências excludentes para os artistas locais.

A nova organização do trabalho artístico implicou a divisão entre companhias dramáticas (dedicadas à tragédia, drama e comédia), companhias líricas (voltadas à ópera e ao canto) e companhias de dança, especialização que demandava formação técnica específica, geralmente adquirida na Europa. Essa segmentação, combinada com a preferência sistemática por artistas estrangeiros, significou a perda de espaço para os profissionais formados na tradição local.

A historiografia mais recente tem chamado atenção para um fenômeno significativo: após a chegada de D. João VI e a efervescência cultural trazida pela Corte, incluindo a célebre Missão Artística Francesa de 1816, os artistas negros e mestiços foram gradativamente sendo afastados dos palcos brasileiros. Esse processo de exclusão, que se intensificaria a partir da década de 1840, não foi acidental, mas resultado de uma política cultural que associava civilização a europeização e que via na presença de artistas negros um obstáculo à elevação do teatro ao status almejado.

Mesmo aqueles que conseguiram permanecer em atividade tiveram sua visibilidade ofuscada e suas condições de trabalho deterioradas. Joaquina Maria da Conceição Lapinha (1760-1856), atriz e cantora mulata que havia sido uma das principais figuras da cena carioca no final do período colonial, viu seu protagonismo diminuir progressivamente após 1808. O rearranjo do mercado teatral manifestou-se também em diferenças salariais expressivas: os artistas europeus recebiam cachês significativamente superiores aos de seus colegas luso-brasileiros, mesmo quando estes desempenhavam funções equivalentes.

O Real Teatro São João, ao privilegiar os padrões estéticos europeus e os artistas formados naquela tradição, consolidou uma hierarquia racial e cultural que marginalizou a cena luso-brasileira preexistente. Esse processo de exclusão não se limitou aos palcos: ele refletia e reforçava as hierarquias sociais de uma sociedade escravista que, paradoxalmente, utilizava o discurso civilizatório europeu, com sua retórica de progresso e ilustração, para justificar práticas de segregação.

A europeização da cena teatral brasileira foi, portanto, um fenômeno ambivalente. Por um lado, elevou os padrões técnicos, ampliou o repertório e inseriu o Brasil nos circuitos culturais atlânticos. Por outro, instituiu mecanismos de exclusão que afastariam dos palcos, por décadas, os artistas negros e mestiços que haviam construído a tradição teatral colonial. Somente no final do século XIX, com o surgimento de companhias e espaços alternativos, essa exclusão começaria a ser parcialmente revertida, em processo que, de resto, permanece inconcluso até os dias de hoje.

3. Gênese da Censura e Meios de Atuação do Estado (1808-1821)

A instalação da Corte joanina no Rio de Janeiro em 1808 impulsionou a "promoção das luzes", criando estruturas intelectuais e administrativas que refletiam a migração da burocracia portuguesa para os trópicos. Não por acaso, a fundação de uma política cultural estatal, expressa pela construção de um "teatro decente", andou de mãos dadas com a criação dos mecanismos de controle. No Brasil, a censura e a polícia possuem a mesma gênese, uma origem comum que conferiu à atividade censória um caráter autoritário e policialesco destinado a perdurar por quase dois séculos.

A Intendência-Geral de Polícia e o Controle das Diversões

A primeira notícia de uma censura institucionalizada às diversões públicas, categoria na qual se incluía o teatro, está ligada ao Alvará de 10 de maio de 1808, que criou o cargo de Intendente-Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil. Esse órgão, modelado a partir de seu equivalente português (criado em 1760 pelo Marquês de Pombal), recebeu amplas atribuições que incluíam a fiscalização dos teatros e das diversões públicas.

O primeiro ocupante do cargo foi Paulo Fernandes Viana, desembargador que exerceu a função entre 1808 e 1821, durante todo o período joanino. Viana acumulava poderes que hoje seriam distribuídos entre diversas instâncias: era responsável pela segurança pública, pelo abastecimento da cidade, pela iluminação das ruas, pelo controle sanitário e, crucialmente, pela vigilância sobre as atividades culturais e de entretenimento. Essa concentração de atribuições fazia do Intendente uma figura central na administração da capital, com influência direta sobre a vida teatral.

A subordinação do teatro à autoridade policial não era peculiaridade brasileira, mas herança direta do modelo português. O Alvará de 1771, que regulamentava os teatros em Portugal, já estabelecia que a fiscalização dos espetáculos competia ao Intendente-Geral de Polícia, a quem cabia "regular os teatros públicos de maneira a serem úteis à civilização". Transplantado para o Brasil, esse modelo vinculou desde a origem a atividade teatral ao aparato repressivo do Estado.

A Censura no Período Joanino: Ausência e Presença

Embora a censura fosse uma presença constante na cultura portuguesa, exercida tradicionalmente pela tríade Real Mesa Censória, Ordinário (autoridade eclesiástica) e Santo Ofício, e o aparelho censório tenha migrado com a Família Real, a historiografia não encontrou evidências documentais de que tenha havido processos de censura específicos por parte da autoridade real em relação às peças e óperas apresentadas no Real Teatro São João entre 1813 e 1820.

Essa aparente ausência de censura prévia sistemática não deve, contudo, ser interpretada como liberalidade. Diversos fatores explicam a relativa tolerância do período joanino. Em primeiro lugar, o repertório encenado no Real Teatro São João era predominantemente composto por óperas italianas, dramas portugueses já aprovados em Lisboa e peças de teor laudatório à monarquia, gêneros que não ofereciam riscos políticos significativos. Em segundo lugar, a própria composição social do público, majoritariamente cortesãos portugueses e membros da elite local comprometida com o projeto monárquico, funcionava como mecanismo informal de controle, desestimulando a encenação de obras potencialmente subversivas.

Além disso, deve-se considerar que o período joanino no Brasil (1808-1821) antecedeu as grandes convulsões políticas que marcariam a década de 1820. A Revolução Liberal do Porto (1820), a Independência (1822) e os conflitos entre constitucionalistas e absolutistas ainda estavam por vir. O teatro, nesse contexto, funcionava primordialmente como espaço de celebração monárquica e entretenimento cortesão, sem a dimensão de arena política que adquiriria nos anos seguintes.

O aparato de controle, porém, já estava estabelecido e pronto para ser mobilizado. A Intendência-Geral de Polícia dispunha de meios legais e operacionais para intervir sobre a cena teatral sempre que julgasse necessário. Se a censura prévia não foi exercida de forma sistemática, a vigilância sobre os espetáculos e a possibilidade de intervenção permaneciam como ameaças latentes, configurando aquilo que poderíamos chamar de censura potencial, uma sombra que pairava sobre a atividade teatral mesmo quando não se materializava em proibições concretas.

Instrumentos de Atuação e Financiamento do Estado Joanino

A política de D. João VI para o teatro, ao invés de introduzir grandes inovações, reproduziu a lógica de intervenção estatal estabelecida em Portugal no final do século XVIII. O governo continuou a tradição europeia de mecenato real, sustentada pela crença de que os teatros eram fundamentais para a "educação dos súditos em relação à autoridade real" e para o "esplendor das nações civilizadas".

Os principais instrumentos de atuação do Estado joanino no campo teatral podem ser sistematizados em cinco categorias:

  • Loterias e Casas de Sorte. Este foi o mecanismo mais importante de financiamento público indireto ao teatro brasileiro durante todo o período imperial. Herdada de Portugal, a concessão de loterias era uma forma de o Estado, frequentemente desprovido de fundos líquidos, levantar recursos junto à população para financiar empreendimentos de interesse público. D. João VI concedeu loterias para a construção do Real Teatro São João da Bahia em 1809 e, posteriormente, autorizou sete loterias para a edificação do Real Teatro São João no Rio de Janeiro. Além da construção, loterias eram também concedidas para a manutenção das temporadas e para socorrer empresários em dificuldades financeiras. Os lucros arrecadados através do jogo de azar, atividade que o Estado simultaneamente condenava moralmente e explorava fiscalmente, eram destinados a diversas finalidades consideradas de utilidade pública, incluindo hospitais, igrejas, obras de infraestrutura e teatros.
  • Isenções Fiscais e Alfandegárias. A Coroa colaborou com a isenção de tarifas alfandegárias para materiais necessários à construção e operação do Real Teatro São João. Essa renúncia fiscal constituía uma forma de investimento indireto, pois reduzia os custos dos empresários sem implicar dispêndio direto do tesouro real. Tecidos para figurinos, maquinaria cênica, instrumentos musicais e materiais de construção importados da Europa beneficiavam-se dessas isenções, que tornavam viável a manutenção de padrões europeus nos espetáculos.
  • Controle Comercial e Administrativo. O Estado mantinha prerrogativas regulatórias sobre o setor teatral. Cabia às autoridades definir os tipos de gênero que podiam subir à cena em cada teatro (evitando, por exemplo, que casas menores competissem diretamente com o Real Teatro São João), regular os preços dos bilhetes para garantir acessibilidade a diferentes camadas da população e exigir aprovação do Paço para a exploração comercial da atividade teatral. Os empresários, embora atuassem sob regime de iniciativa privada, operavam dentro de marcos estreitamente definidos pelo poder real.
  • Mecenato Pessoal. D. João VI também exercia o mecenato através de seu "Real Bolsinho", dotação pessoal do monarca destinada a agraciar servidores prediletos. Músicos, compositores e artistas de destaque recebiam pensões e gratificações diretamente do soberano, numa prática que combinava proteção às artes com cultivo de lealdades pessoais. Marcos Portugal, compositor que ocupava a direção artística do Real Teatro São João, era um dos principais beneficiários desse mecenato real.
  • Concessão de Privilégios e Monopólios. Seguindo a tradição do Antigo Regime, o Estado concedia privilégios exclusivos a determinados empresários, protegendo-os da concorrência. Fernando José de Almeida e seus sucessores na administração do Real Teatro São João gozaram, durante décadas, de posição privilegiada no mercado teatral carioca, beneficiando-se de loterias, isenções e proteção oficial que não eram estendidas a eventuais concorrentes.

O Modelo Joanino: Herança e Permanência

Em suma, D. João VI deixou como herança um modelo de envolvimento entre Estado e teatro que combinava fomento indireto (loterias, isenções, privilégios) com controle potencial (vigilância policial, censura latente). Esse arranjo garantia o exercício comercial da atividade teatral desde que as prerrogativas da realeza fossem integralmente respeitadas e que o palco permanecesse como espaço de exaltação monárquica.

O Real Teatro São João, em particular, consolidou-se como palco oficial da Corte, onde se confirmava a ligação íntima entre Coroa e teatro. Ali se celebravam os aniversários da Família Real, os nascimentos de príncipes, as vitórias militares, os casamentos dinásticos, todo o calendário cerimonial da monarquia encontrava no teatro seu complemento ritualístico. O público, ao frequentar os espetáculos, participava desses rituais de afirmação do poder, numa experiência que combinava entretenimento e pedagogia política.

Esse modelo, estabelecido entre 1808 e 1821, seria herdado e aprofundado por D. Pedro I no Primeiro Reinado. A diferença fundamental residiria no contexto político: enquanto o período joanino foi relativamente estável, a década de 1820 seria marcada por intensos conflitos que transformariam o teatro em arena de disputa e que exigiriam, consequentemente, o endurecimento dos mecanismos de controle.

III. Primeiro Reinado (1822-1831)

Com o processo de Independência em 1822 e a ascensão de D. Pedro I ao trono imperial, a relação umbilical entre o Estado e o teatro não apenas continuou, mas intensificou-se em meio às turbulências políticas que caracterizaram o período. O novo monarca deu continuidade às ações de seu pai, mantendo em funcionamento a estrutura político-administrativa herdada da corte joanina mas operando-a em um contexto radicalmente distinto.

O Primeiro Reinado foi um período de grande instabilidade política, marcado pela tensão permanente entre a autoridade imperial e os princípios constitucionais recém-estabelecidos, pelos conflitos entre brasileiros e portugueses, pelas revoltas provinciais e pela guerra na Cisplatina. A atuação do Estado no teatro refletiu essa complexidade: o palco tornou-se simultaneamente instrumento de legitimação monárquica e arena de contestação política, espaço de celebração dinástica e foco de manifestações liberais.

O modo como o Estado brasileiro fomentou as artes cênicas durante o governo de D. Pedro I repetiu, em linhas gerais, os códigos estabelecidos por Portugal: uma abordagem predominantemente comercial e material, carente de preocupações estéticas profundas, mas sempre acompanhada pelo apelo à censura e ao controle policial. A peculiaridade desta fase residiu na continuidade do modelo de administração joanina, em que o imperador concentrava a prerrogativa de conceder os chamados "jogos de sorte" para o auxílio financeiro do teatro, prerrogativa que, como veremos, seria objeto de disputa com o Poder Legislativo após a promulgação da Constituição de 1824.

1. Continuidade do Patrocínio e Preferência pelo Gênero Lírico

D. Pedro I manteve a tradição europeia de mecenato real iniciada por D. João VI, reforçando o modelo de financiamento indireto que havia sustentado a atividade teatral durante o período joanino. O imperador seguiu os passos de seu pai ao perdoar dívidas de empresários teatrais em dificuldades, ao contratar companhias portuguesas de destaque e ao conceder loterias para a manutenção do principal palco da Corte.

O Incêndio de 1824 e a Reconstrução

Antes de examinar a política de patrocínio de D. Pedro I, é necessário registrar um evento dramático que marcou a história do teatro brasileiro: o incêndio que destruiu o Real Teatro São João na noite de 25 de março de 1824.

Naquela data, o teatro havia sido palco de uma récita de gala em celebração à outorga da primeira Constituição do Império, jurada por D. Pedro I naquela mesma noite. A coincidência entre a celebração constitucional e a destruição do edifício pelo fogo, que deixou de pé apenas as quatro paredes externas de pedra e cal, foi interpretada pelos contemporâneos como presságio, embora discordassem sobre seu significado: para uns, anunciava o fim de uma era; para outros, o batismo de fogo da nova nação.

O incêndio representou um duro golpe para a vida cultural da Corte. O teatro, que havia custado anos de construção e vultosos recursos arrecadados por loterias, reduziu-se a escombros em poucas horas. Os cenários, figurinos, partituras e toda a maquinaria cênica importada da Europa foram consumidos pelas chamas. A companhia dramática viu-se subitamente sem palco, e os artistas enfrentaram meses de incerteza profissional.

A reconstrução foi empreendida com notável celeridade, demonstrando a importância que o teatro assumia para a monarquia. D. Pedro I determinou que o edifício fosse reerguido com a maior brevidade possível, mobilizando recursos do Estado e concedendo novas loterias para financiar as obras. Em 22 de janeiro de 1826, menos de dois anos após o incêndio, o teatro foi reinaugurado com o novo nome de Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, homenagem ao santo padroeiro do imperador. O edifício reconstruído manteve as linhas gerais do projeto original de José da Costa e Silva, com alguns aprimoramentos na acústica e na segurança contra incêndios.

Loterias: O Principal Instrumento de Fomento

O apoio estatal ao teatro manifestava-se primordialmente através da concessão de loterias, que se consolidaram como o principal mecanismo de incentivo público à cultura durante o Primeiro Reinado. A concessão de loterias por decreto era uma prática característica do Antigo Regime, e o empresário responsável pelo Real/Imperial Teatro foi praticamente o único a se beneficiar desse privilégio de forma sistemática ao longo de quase duas décadas.

Um dos primeiros decretos assinados por D. Pedro I após a Independência, datado de 26 de dezembro de 1822, apenas três meses depois do Grito do Ipiranga, tratava justamente da concessão de uma loteria ao proprietário do então Imperial Teatro São Pedro de Alcântara. O objetivo declarado era permitir que o empresário regularizasse suas dívidas e reabrisse a casa com espetáculos "dignos de serem oferecidos ao público carioca". O decreto é revelador das prioridades do novo governo: em meio às urgências de consolidação do Estado independente, a manutenção do teatro da Corte figurava entre as primeiras preocupações imperiais.

A justificativa para tal intervenção estava expressa no próprio decreto, que declarava o desejo do imperador de proteger o estabelecimento pelos "atendíveis e conhecidos motivos porque os teatros são favorecidos em todas as nações civilizadas". Essa formulação reiterava a ideologia do pensamento cênico dominante, que concebia a arte teatral com propósitos educativos e moralizadores, vendo no patrocínio aos teatros uma marca distintiva das nações evoluídas.

A Questão Constitucional das Loterias

A Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I após a dissolução da Assembleia Constituinte, introduziu uma novidade importante no arranjo institucional relativo às loterias. O texto constitucional estabelecia, em seu artigo 15, incisos VIII e X, que competia à Assembleia Geral (composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado) autorizar a criação de loterias e fiscalizar o emprego dos recursos públicos.

Essa disposição criou uma tensão potencial entre o Poder Executivo, que tradicionalmente detinha a prerrogativa de conceder loterias por decreto, como herança do Antigo Regime, e o Poder Legislativo, agora constitucionalmente investido de competência sobre a matéria. Na prática, durante o Primeiro Reinado, essa tensão não chegou a se manifestar de forma aguda, pois a Assembleia Geral funcionou de maneira intermitente e o imperador manteve considerável margem de manobra em questões administrativas. Contudo, a semente do conflito estava plantada, e os debates sobre a competência para conceder loterias aos teatros ganhariam intensidade nas décadas seguintes, especialmente durante o Período Regencial e o Segundo Reinado.

A Contratação de Companhias Estrangeiras

A contratação de companhias estrangeiras permaneceu como pilar fundamental da política teatral de D. Pedro I. Seguindo o modelo estabelecido por seu pai, o imperador investiu recursos significativos na importação de elencos europeus, especialmente portugueses, que garantissem padrões artísticos elevados e repertório atualizado.

O exemplo mais notável dessa política foi a contratação, em Lisboa, de uma companhia dramática completa que chegou ao Rio de Janeiro em meados de 1829. Décio de Almeida Prado descreveu esse elenco como "o melhor que existia no mercado" português. O astro central da companhia era a atriz Ludovina Soares da Costa (1802-1868), que fixou residência no Rio de Janeiro e tornou-se uma das principais figuras da cena brasileira nas décadas seguintes. Sua chegada representou um marco na profissionalização do teatro nacional, trazendo consigo técnicas interpretativas e padrões de atuação formados na tradição europeia.

A presença de artistas do calibre de Ludovina garantia o que críticos posteriores chamaram de "continuidade profissional": um fluxo constante de profissionais qualificados que assegurava a transmissão de saberes cênicos e a manutenção de repertório atualizado em relação aos palcos europeus. Essa política de importação, contudo, perpetuava a dependência cultural em relação a Portugal e reforçava a marginalização dos artistas luso-brasileiros, especialmente os negros e mestiços que haviam dominado a cena colonial.

A Preferência pelo Gênero Lírico

A preferência pessoal de D. Pedro I pelo gênero lírico imprimiu marca distintiva à política teatral do Primeiro Reinado. O imperador era dotado de notáveis aptidões musicais: compositor amador, tocava diversos instrumentos e nutria verdadeira paixão pela ópera italiana. Essa predileção real, que lhe rendeu o apelido de "príncipe filarmônico", contribuiu para o expressivo desenvolvimento da cena musical no Rio de Janeiro.

O governo sustentava as temporadas líricas com recursos consideráveis, às vezes financiando-as integralmente, porque a ópera era vista como o gênero teatral mais elevado, símbolo máximo de civilização e refinamento. Nas palavras de um documento da época, o teatro lírico era considerado essencial para "a tranquilidade, a moral e a paz, os bons costumes" da sociedade. A ópera italiana, em particular, gozava de imenso prestígio: suas árias eram cantaroladas nas ruas, seus libretos circulavam em traduções, e a presença em récitas líricas constituía marca de distinção social.

A primazia concedida ao gênero lírico teve consequências ambivalentes para o desenvolvimento do teatro brasileiro. Por um lado, elevou os padrões musicais e proporcionou ao público carioca acesso a obras do repertório europeu contemporâneo. Por outro, relegou o teatro declamado (tragédias, dramas e comédias em português) a uma posição secundária, dificultando o surgimento de uma dramaturgia nacional. Os autores brasileiros que desejassem ver suas obras encenadas no principal palco da Corte enfrentavam a concorrência desigual das óperas italianas, que contavam com o patrocínio imperial e a preferência do público elegante.

Essa hierarquia de gêneros refletia, em última instância, a hierarquia social: a ópera, cantada em italiano e apreciada pela elite, ocupava o topo da pirâmide; o drama e a comédia, em português, dirigiam-se a um público mais amplo; as farsas e entremezes populares, frequentemente improvisados, eram tolerados nas casas menores mas excluídos do teatro imperial. O patrocínio estatal, ao privilegiar sistematicamente o gênero lírico, reforçava essa estratificação e postergava o desenvolvimento de uma tradição dramatúrgica propriamente brasileira.

2. O Teatro como Palco Político

Durante o Primeiro Reinado (1822-1831), a simbiose entre Coroa e teatro manteve-se íntima e protocolar, reproduzindo a tradição europeia que utilizava o palco como extensão simbólica do poder. O teatro era, sobretudo, um espaço de exaltação dos chefes monárquicos e de seus familiares, dando continuidade à política pública e às convenções estabelecidas por D. João VI. Contudo, a intensificação dos conflitos políticos que marcaram o período transformou progressivamente o teatro em arena de disputas, onde a celebração dinástica convivia, nem sempre pacificamente, com a contestação liberal.

O Ritual Monárquico e a Presença Imperial

A presença da Família Imperial em espetáculos de gala constituía elemento central da liturgia política do Primeiro Reinado. Eventos como aniversários do imperador e da imperatriz, nascimentos de príncipes, datas comemorativas da Independência e efemérides religiosas eram celebrados no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara com récitas especiais, para as quais a elite da Corte comparecia em trajes de rigor.

Nessas ocasiões, o interior do teatro transformava-se em cenário de ostentação monárquica. O camarote imperial, posicionado no centro da primeira ordem de camarotes, em localização elevada e visível de todos os pontos da sala, era ornamentado com sedas, brasões e as armas do Império. A entrada de D. Pedro I e da Imperatriz Leopoldina (e, após sua morte em 1826, da Imperatriz Amélia) era saudada pela orquestra com o Hino da Independência, enquanto o público se erguia em aclamações e vivas.

O palco servia, assim, como ponte entre os súditos e o poder, mediando a comunicação afetiva entre a monarquia e a cidade. As récitas de gala funcionavam como rituais de reafirmação da lealdade: o público, ao aplaudir o imperador, declarava simbolicamente sua adesão ao regime; o monarca, ao se fazer presente e visível, demonstrava sua solicitude para com os súditos e sua participação na vida cultural da capital. Essa troca simbólica, repetida inúmeras vezes ao longo do Primeiro Reinado, conferia ao teatro uma função política que transcendia largamente o entretenimento.

O repertório encenado nas récitas de gala reforçava essa dimensão celebratória. Peças de ocasião, compostas especialmente para as efemérides imperiais, louvavam as virtudes do monarca, narravam episódios gloriosos da história recente (como a Independência e o reconhecimento internacional do Império) e profetizavam um futuro grandioso para a jovem nação. Essas obras, geralmente de escasso valor literário, cumpriam função análoga à dos sermões e panegíricos: pedagogia política destinada a moldar a opinião pública e a cultivar o sentimento monárquico.

A Constituição Jurada no Palco

O auge dessa relação formal entre a Coroa e o palco ocorreu em 25 de março de 1824, data em que D. Pedro I outorgou a primeira Constituição do Império do Brasil. A cerimônia de juramento, realizada pela manhã no Campo de Santana, foi seguida por uma récita de gala no Real Teatro São João, onde o imperador compareceu para receber as aclamações do público.

A escolha do teatro como espaço de celebração constitucional não era casual. Ao associar a promulgação da Carta Magna ao ambiente teatral, D. Pedro I reiterava a concepção do palco como extensão do poder real e como fórum privilegiado de comunicação com a elite letrada da capital. O teatro, naquela noite, funcionou como parlamento simbólico: espaço onde a nação, representada pelo público presente, sancionava ritualmente o ato do soberano.

A ironia trágica do incêndio que consumiu o edifício naquela mesma noite não escapou aos contemporâneos. As chamas que devoraram o Real Teatro São João, poucas horas após a celebração constitucional, foram interpretadas como símbolo polissêmico: para os partidários do imperador, representavam o batismo de fogo da nova ordem constitucional; para os críticos, prenunciavam as contradições de uma Constituição outorgada e não votada por uma assembleia eleita, imposta pelo mesmo monarca que havia dissolvido a Constituinte no ano anterior.

O Palco como Arena de Manifestação e Contestação

O teatro do Primeiro Reinado não funcionava, contudo, apenas como receptáculo passivo dos rituais monárquicos. À medida que se intensificavam os conflitos políticos da década de 1820, o espaço teatral transformou-se em arena para a manifestação da opinião pública e do descontentamento político, refletindo a intensa ebulição que atravessava a sociedade brasileira.

O contexto era de profunda instabilidade. A dissolução da Assembleia Constituinte por D. Pedro I em novembro de 1823, seguida da prisão e exílio de deputados, havia gerado ressentimentos duradouros entre os liberais. A Confederação do Equador (1824), revolta de caráter republicano e federalista que eclodiu em Pernambuco e se estendeu a outras províncias do Nordeste, fora reprimida com violência, deixando um rastro de mártires, como Frei Caneca, fuzilado em janeiro de 1825. A prolongada e impopular Guerra da Cisplatina (1825-1828), que resultaria na perda da província e na criação do Uruguai, drenava recursos e vidas. Os conflitos entre o "partido brasileiro" e o "partido português", este último identificado com os interesses recolonizadores, envenenavam a atmosfera política da Corte.

Nesse contexto de luta de forças entre os liberais constitucionalistas, que buscavam impor limites efetivos ao poder real, e o temperamento autoritário de D. Pedro I, o teatro foi mobilizado como arma política. Peças que ressoavam com os ideais liberais eram encenadas e aplaudidas de forma veemente, enquanto obras de teor absolutista ou favoráveis ao imperador podiam ser recebidas com frieza, vaias ou protestos.

O drama O Anel de Ferro, de tema liberal, ressurgiu nos palcos brasileiros nesse período e foi aclamado com "enchentes extraordinárias", expressão da época para lotação completa. A peça tornou-se símbolo do confronto de forças políticas, e suas récitas transformavam-se em manifestações liberais thinly veiled, onde o aplauso às falas contra a tirania funcionava como protesto contra o autoritarismo imperial.

A Politização da Cena e os Riscos da Profissão

A extrema politização do teatro criava situações delicadas para os artistas, que se viam obrigados a encarnar no palco personagens cujas ideias podiam ser perigosamente identificadas, pelo público ou pelas autoridades, com suas opiniões pessoais. A fronteira entre ficção dramática e posicionamento político tornava-se porosa, expondo os atores a riscos consideráveis.

Um episódio ilustrativo dessa tensão envolve o ator José Joaquim de Barros, que interpretou o papel do tirano na peça O Dia de Júbilo para os Amantes da Liberdade ou A Queda do Tirano. O título da obra já indicava sua orientação política, e a encenação de um personagem despótico, em clima de acirramento antiabsolutista, podia acarretar consequências pessoais para o intérprete. Precavendo-se, José Joaquim de Barros fez publicar nos jornais uma declaração em que afirmava que seus sentimentos pessoais eram "inteiramente opostos" aos do personagem que se via obrigado a representar "para o bem do drama".

Esse expediente, a declaração pública de dissociação entre ator e personagem, revela a intensidade da politização teatral no Primeiro Reinado. O palco havia deixado de ser espaço meramente recreativo para se imiscuir nas lutas políticas; consequentemente, os artistas precisavam negociar cuidadosamente sua posição, protegendo-se tanto das represálias das autoridades quanto da hostilidade do público.

Manifestações no Teatro: Adesão e Protesto

O público teatral do Primeiro Reinado não era espectador passivo, mas participante ativo do espetáculo político que se desenrolava na sala. As récitas ofereciam oportunidade para manifestações coletivas que extrapolavam largamente a apreciação estética: vivas, aclamações, assobios, vaias, arremesso de objetos, interrupções e tumultos eram formas de intervenção através das quais a plateia expressava suas posições.

Nos momentos de maior tensão política, o teatro transformava-se em termômetro da opinião pública. A recepção a D. Pedro I nas récitas de gala, se calorosa ou fria, se acompanhada de vivas entusiásticos ou de silêncio constrangedor, era observada atentamente e comentada nos jornais e nos círculos políticos. O imperador, ciente dessa dimensão, fazia-se presente com frequência calculada, buscando colher aplausos que legitimassem seu governo perante a elite da capital.

Por vezes, contudo, as manifestações escapavam ao controle. Há registros de récitas em que partidários liberais aproveitaram a presença de autoridades para entoar canções patrióticas de teor contestatório, ou em que a encenação de cenas de tirania foi acompanhada por olhares ostensivos em direção ao camarote imperial. Essas formas de protesto velado, suficientemente ambíguas para evitar a repressão direta, mas claras o bastante para serem compreendidas pelos presentes, constituíam repertório de resistência característico de regimes autoritários.

A dimensão de conflito político atingiu seu ápice nos meses que antecederam a abdicação de D. Pedro I. Em março de 1831, quando o imperador retornou de uma viagem a Minas Gerais onde fora recebido com hostilidade, a tensão entre brasileiros e portugueses explodiu nas ruas do Rio de Janeiro na chamada "Noite das Garrafadas". O teatro, espelho da sociedade, refletiu essa crise: as récitas tornaram-se ocasiões de enfrentamento entre os partidos, e a presença (ou ausência) do imperador era interpretada como sinal de força ou fraqueza política.

Em 7 de abril de 1831, D. Pedro I abdicou em favor de seu filho, o futuro D. Pedro II, então com apenas cinco anos de idade. O teatro, que durante nove anos servira alternadamente como palco de celebração monárquica e arena de contestação liberal, ingressava em uma nova fase de sua história (o Período Regencial), marcada por ainda maior instabilidade e pela intensificação dos debates sobre o papel do Estado na cultura.

3. Censura e Controle Policial Reforçado

Se o período joanino caracterizou-se por uma censura mais latente do que efetiva, em que o aparato de controle existia mas raramente era mobilizado, o Primeiro Reinado assistiu ao endurecimento progressivo dos mecanismos de vigilância sobre a atividade teatral. A intensificação dos conflitos políticos, a emergência de uma opinião pública contestatória e a transformação do teatro em arena de disputas exigiram, na perspectiva do governo imperial, o reforço das estruturas de controle.

Paradoxalmente, esse endurecimento ocorreu sob a vigência de uma Constituição que, em seu artigo 179, inciso IV, garantia formalmente a livre manifestação do pensamento, "independente de censura". A contradição entre o texto constitucional e a prática administrativa atravessou todo o Primeiro Reinado, com editais, avisos e regulamentos sobrepondo-se sistematicamente às garantias constitucionais. Na prática, a censura não apenas persistiu como ganhou contornos mais definidos, submetida à Intendência-Geral de Polícia e exercida com crescente rigor à medida que se acirrava a crise política.

A Intendência-Geral de Polícia e a Fiscalização Teatral

A Intendência-Geral de Polícia da Corte e do Império do Brasil, órgão cuja gênese remontava ao Alvará de 10 de maio de 1808, permaneceu como instância central de fiscalização dos teatros e divertimentos públicos durante o Primeiro Reinado. A continuidade institucional era notável: o mesmo aparato criado por D. João VI para vigiar a cena teatral foi herdado e aprofundado por D. Pedro I.

O Intendente-Geral de Polícia acumulava amplas atribuições que faziam dele figura onipresente na vida urbana da Corte. Cabia-lhe não apenas a segurança pública em sentido estrito, mas também o controle sobre as diversões populares, a fiscalização de estabelecimentos comerciais, a vigilância sobre estrangeiros, a repressão à vadiagem e, crucialmente, a censura prévia das peças teatrais. Essa concentração de poderes conferia ao Intendente enorme influência sobre a atividade cultural, permitindo-lhe autorizar ou proibir espetáculos, determinar alterações em textos dramáticos e ordenar a prisão de artistas considerados transgressores.

Francisco Alberto Teixeira de Aragão ocupou o cargo de Intendente-Geral durante parte significativa do Primeiro Reinado, exercendo papel central na conformação do aparato censório. Era a ele que os empresários teatrais deviam submeter as peças antes de qualquer ensaio ou representação pública, aguardando o parecer que autorizava ou vetava a encenação. O Intendente podia não apenas proibir obras inteiras, mas também determinar cortes de cenas, falas ou personagens considerados ofensivos à moral, à religião ou às autoridades constituídas.

O Edital de 29 de Novembro de 1824

O documento que instituiu formalmente a censura teatral no Brasil independente foi o Edital de 29 de novembro de 1824, assinado pelo Intendente-Geral Francisco Alberto Teixeira de Aragão. Este regulamento, promulgado apenas oito meses após a outorga da Constituição que teoricamente garantia a liberdade de expressão, estabeleceu as normas de segurança e policiamento a serem observadas nos teatros da capital.

O Edital era explícito quanto à exigência de censura prévia. Determinava que todas as peças fossem remetidas ao Intendente "para que este antes de qualquer ensaio ou publicação, possa proibi-lo quando seja contrário aos bons costumes e leis do Império". A formulação era suficientemente ampla para conferir ao censor arbítrio quase ilimitado: a noção de "bons costumes", conceito vago e maleável, podia ser invocada para justificar a proibição de qualquer obra que desagradasse às autoridades, independentemente de seu conteúdo político explícito.

A justificativa apresentada pelo próprio Edital para a instituição da censura revelava a concepção oficial sobre a função do teatro. Segundo o documento, as medidas visavam evitar as "desordens e irregularidades que privam os povos da utilidade que este divertimento deve-lhes produzir quando é bem ordenado". O teatro, nessa perspectiva, era concebido como instrumento de utilidade pública, mas essa utilidade dependia de sua "boa ordenação", isto é, de sua submissão ao controle estatal. Um teatro livre, não regulado, seria potencialmente perigoso; apenas sob vigilância constante poderia cumprir sua função civilizatória.

O Aviso de 21 de Julho de 1829

A fiscalização censória tornou-se mais focada no principal palco da Corte com o Aviso nº 23, de 21 de julho de 1829, emanado da Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Este documento ordenava especificamente que o Intendente-Geral da Polícia examinasse previamente todas as peças destinadas à encenação no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara.

A especificação do teatro imperial como objeto privilegiado de vigilância não era casual. Aquele era o palco onde a Família Imperial comparecia às récitas de gala, onde a elite da Corte se reunia, onde os embaixadores estrangeiros assistiam aos espetáculos. Qualquer deslize, uma fala que pudesse ser interpretada como crítica ao governo, uma cena que ofendesse o decoro, um ator que improvisasse comentários impertinentes, teria repercussões ampliadas pela qualidade do público presente. A censura sobre o Teatro São Pedro de Alcântara era, assim, simultaneamente controle político e gestão de imagem: tratava-se de garantir que o principal vitrine cultural do Império apresentasse apenas espetáculos compatíveis com a dignidade da monarquia.

O Aviso de 1829 situava-se em um contexto de acirramento das tensões políticas. Naquele ano, a crise entre D. Pedro I e os liberais aproximava-se de seu clímax. A imprensa de oposição tornava-se cada vez mais virulenta, e o teatro, como vimos, havia se transformado em arena de manifestações. O reforço da censura sobre o palco imperial era resposta direta a essa conjuntura: o governo buscava blindar ao menos aquele espaço contra a infiltração do discurso contestatório.

Vigilância In Loco: O Policiamento Durante os Espetáculos

O controle exercido pelo Estado não se limitava à censura prévia dos textos. O Edital de 1824 estabelecia um sistema de vigilância in loco que acompanhava os espetáculos em tempo real, pronto a intervir diante de qualquer irregularidade. A ordem no teatro seria mantida pela presença permanente de um oficial de polícia, investido de autoridade para fazer cumprir as determinações do Intendente.

Esse oficial, que se identificava ostensivamente por uma medalha com a inscrição "Polícia do Teatro", tinha poderes amplos. Podia determinar a retirada de qualquer pessoa do recinto, fosse por comportamento inadequado, manifestação política ou simples suspeita. A presença policial visível funcionava como elemento dissuasório: o público, ciente de que estava sendo observado, tenderia a moderar suas manifestações. A medalha exibida pelo oficial era, assim, tanto instrumento de identificação quanto símbolo de autoridade, um lembrete permanente de que o espaço teatral, embora destinado ao entretenimento, permanecia sob a tutela do Estado.

O Edital regulamentava ainda o comportamento do público com minúcia reveladora das preocupações das autoridades. Era proibida a entrada na plateia portando armas, bengalas ou chapéus de chuva, objetos que podiam ser utilizados em tumultos ou como instrumentos de agressão. Os espectadores deviam manter-se sentados durante as representações, evitando movimentações que pudessem perturbar a ordem. Manifestações ruidosas (aplausos excessivos, vaias, assobios, gritos) podiam ser reprimidas a critério do oficial presente.

Essas disposições revelam que o teatro era percebido pelas autoridades como espaço potencialmente perigoso, onde a aglomeração de pessoas em ambiente fechado podia facilmente degenerar em desordem. A experiência europeia, especialmente os tumultos teatrais que haviam marcado a Revolução Francesa, quando os palcos parisienses se transformaram em tribunas revolucionárias, certamente referendava essa preocupação. No contexto brasileiro do Primeiro Reinado, com suas tensões entre liberais e absolutistas, entre brasileiros e portugueses, o temor de que o teatro se convertesse em foco de sedição era permanente.

A Punição dos Artistas: Disciplina e Coerção

O sistema de controle estendia-se aos próprios artistas, submetidos a regime disciplinar rigoroso. O Regulamento Interno do Teatro São Pedro de Alcântara, aprovado em 1833, já no Período Regencial, mas refletindo a mentalidade de controle estabelecida no Primeiro Reinado, previa punições severas para atores que transgredissem as normas de conduta em cena.

O documento é eloquente quanto à natureza coercitiva do controle estatal. Determinava que, caso um ator ofendesse em cena "a decência pública" ou cometesse algum abuso "contrário à moral e ao respeito devido ao público", seria "preso logo que se recolher aos bastidores, e condenado à cadeia depois que acabar a parte que tiver que executar". A formulação é reveladora: o artista transgressor seria detido imediatamente após deixar o palco, mas somente depois de concluir sua participação no espetáculo. Assim, a ordem pública do teatro prevalecia sobre a punição individual e o show, literalmente, deveria continuar.

A previsão de prisão imediata por gestos ou palavras considerados ofensivos conferia ao oficial de polícia presente no teatro poderes de juiz sumário. Não havia processo, defesa ou apelação: bastava o arbítrio policial para que um ator fosse conduzido ao cárcere diretamente dos bastidores. Essa disposição criava um ambiente de intimidação que condicionava profundamente a prática teatral: os artistas sabiam que qualquer improviso, qualquer gesto não previsto no texto aprovado pela censura, qualquer inflexão de voz que sugerisse crítica às autoridades, podia resultar em prisão.

O controle disciplinar sobre os artistas não se limitava às apresentações públicas. Os ensaios eram igualmente vigiados, e cabia ao empresário teatral, sob pena de responsabilização, garantir que o elenco cumprisse fielmente o texto aprovado pelo censor. Qualquer alteração, corte ou acréscimo devia ser previamente submetida à Intendência. O artista, nesse sistema, era reduzido à condição de executor de um texto duplamente controlado: primeiro pelo autor (ou tradutor), depois pelo censor.

A Herança Policialesca

O modelo de censura estabelecido durante o Primeiro Reinado deixou marca duradoura na história brasileira. A subordinação do controle teatral à autoridade policial e não a um órgão cultural ou artístico, configurou uma tradição de censura policialesca que atravessaria os séculos XIX e XX, manifestando-se em diferentes regimes políticos.

No Império, essa tradição seria parcialmente modificada com a criação do Conservatório Dramático Brasileiro em 1843, órgão composto por literatos e homens de letras que passaria a exercer a censura prévia das peças. Contudo, mesmo após a criação do Conservatório, a polícia manteve suas prerrogativas de vigilância in loco e de intervenção durante os espetáculos. A censura "ilustrada" do Conservatório sobrepunha-se, sem substituir, ao controle policial herdado do período joanino e consolidado no Primeiro Reinado.

Essa dualidade (censura prévia exercida por letrados, vigilância policial exercida por agentes do Estado) caracterizaria o sistema brasileiro de controle teatral por todo o período imperial. As tensões entre as duas instâncias seriam frequentes: o Conservatório, composto por intelectuais que muitas vezes simpatizavam com a causa teatral, tendia a aprovar obras que a polícia considerava subversivas; a polícia, por sua vez, podia proibir na prática espetáculos formalmente autorizados pelo Conservatório. O artista e o empresário navegavam entre essas duas autoridades, buscando satisfazer a ambas.

A origem comum de censura e polícia no Brasil, ambas nascidas do mesmo Alvará de 1808, ambas concentradas na figura do Intendente-Geral, conferiu à repressão cultural brasileira um caráter distintivamente autoritário. Diferentemente de países onde a censura teatral foi exercida por academias literárias, corporações de ofício ou comissões de notáveis, no Brasil o controle sobre os palcos esteve desde sempre vinculado ao aparato repressivo do Estado. Essa herança projetaria sua sombra até o século XX, quando a censura do Estado Novo e posteriormente da ditadura militar reproduziria, em escala ampliada, os mecanismos de vigilância e punição gestados no Primeiro Reinado.

Em suma, o período de D. Pedro I consolidou um modelo de relação entre Estado e teatro que combinava fomento material (loterias, isenções, contratação de companhias) com controle ideológico (censura prévia, vigilância policial, punição de artistas). Esse arranjo, que subordinava a proteção estatal à submissão política, seria herdado pelos governos subsequentes e constituiria o marco dentro do qual se desenvolveria, ou seria constrangida, a atividade teatral brasileira ao longo de todo o século XIX.

Considerações Finais

O período que se estende da chegada da Corte portuguesa ao Brasil (1808) até a abdicação de D. Pedro I (1831) configurou os alicerces da relação entre Estado e teatro que perduraria por todo o século XIX. Em pouco mais de duas décadas, foram estabelecidos os paradigmas institucionais, os mecanismos de financiamento, as estruturas de controle e as concepções ideológicas que moldariam a atividade teatral brasileira nas décadas subsequentes.

O modelo que emergiu desse período fundacional caracterizava-se por uma ambivalência constitutiva. De um lado, o Estado assumiu papel ativo no fomento à atividade teatral, reconhecendo-a como marca de civilização e instrumento de pedagogia social. A construção do Real Teatro São João, a concessão sistemática de loterias, as isenções fiscais, a contratação de companhias estrangeiras e o mecenato imperial configuraram uma política de proteção que, embora indireta e frequentemente insuficiente, distinguia o Brasil de sociedades onde o teatro dependia exclusivamente da iniciativa privada. Nesse sentido, os Bragança, tanto D. João VI quanto D. Pedro I, inscreveram-se na tradição europeia de mecenato real, concebendo o patrocínio às artes cênicas como atributo da soberania e como investimento na imagem civilizada da nação.

Contudo, é preciso assinalar uma diferença crucial entre o modelo brasileiro e o paradigma francês que lhe servia de referência ideal. Apesar do discurso que evocava a Comédie-Française como horizonte de civilização, o Estado imperial jamais constituiu companhias teatrais integralmente públicas, com elencos estáveis remunerados pelo tesouro e repertório definido por critérios artísticos ou patrimoniais. O fomento brasileiro permaneceu sempre indireto (loterias, isenções, privilégios comerciais) e direcionado a empresários privados que assumiam os riscos e colhiam os lucros (ou, mais frequentemente, os prejuízos) da atividade. O Real Teatro São João e seu sucessor, o Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, eram espaços concedidos à exploração particular, não instituições públicas no sentido pleno do termo.

Essa opção pelo fomento indireto, herdada do modelo pombalino português, teve consequências duradouras. Sem companhias estáveis garantidas pelo Estado, o teatro brasileiro permaneceu estruturalmente dependente das oscilações do mercado, da capacidade financeira dos empresários e do fluxo de artistas estrangeiros. A formação de um repertório nacional, a constituição de escolas de interpretação, a preservação da memória cênica, funções que a Comédie-Française exercia na França desde o século XVII, ficaram relegadas à iniciativa dispersa de particulares. O "teatro nacional" com que sonhavam os homens de letras do Oitocentos permaneceu, durante todo o período imperial, mais como aspiração retórica do que como realidade institucional.

De outro lado, se o Estado se furtou a assumir integralmente os custos do teatro, não abriu mão de controlá-lo. O fomento estatal veio sempre acompanhado de vigilância: a censura prévia, o policiamento dos espetáculos, a punição dos artistas transgressores e a instrumentalização do palco para fins de legitimação monárquica constituíam a contrapartida exigida pelo Estado em troca de seu apoio. O teatro que o governo imperial desejava promover era um teatro domesticado, útil à propagação dos valores oficiais, submisso às autoridades constituídas, incapaz de questionar a ordem estabelecida. A liberdade artística, nesse arranjo, existia apenas nos interstícios deixados pela censura.

Configurou-se, assim, um paradoxo que marcaria a história cultural brasileira: o Estado reivindicava para si o direito de censurar e vigiar o teatro em nome da moralidade e da ordem pública, mas recusava-se a sustentá-lo plenamente como instituição pública. Os ônus do controle eram assumidos integralmente; os custos do fomento, transferidos à sociedade (via loterias) e aos empresários privados. Esse arranjo assimétrico, muito controle e pouco investimento direto, revelava os limites do projeto civilizatório imperial: a elite dirigente desejava os frutos simbólicos de uma cultura teatral florescente, mas não estava disposta a arcar com os recursos necessários para edificá-la de forma consistente.

Essa ambivalência refletia as contradições mais amplas da sociedade brasileira oitocentista. O discurso civilizatório que justificava o patrocínio ao teatro, com suas referências à França ilustrada, à utilidade moral das artes, ao progresso das nações cultas, convivia com práticas autoritárias herdadas do Antigo Regime português. A Constituição de 1824, que garantia a liberdade de expressão, era sistematicamente contornada por editais e regulamentos que submetiam o palco à polícia. O ideal de um teatro nacional, capaz de expressar a identidade da jovem nação, esbarrava na dependência estrutural de repertórios, artistas e modelos europeus. A retórica do progresso e das luzes legitimava, paradoxalmente, a exclusão dos artistas negros e mestiços que haviam construído a tradição teatral colonial.

O legado do período joanino e do Primeiro Reinado projetou-se nas décadas seguintes. O Período Regencial (1831-1840), marcado por intensa instabilidade política, assistiria à continuidade dos debates sobre o financiamento teatral e à criação, em 1843, do Conservatório Dramático Brasileiro, numa tentativa de conferir à censura feições mais ilustradas, sem contudo eliminar o controle policial. O Segundo Reinado (1840-1889), sob D. Pedro II, veria o florescimento do teatro romântico e, posteriormente, do teatro realista, em diálogo constante com as matrizes francesas, mas sempre dentro dos marcos institucionais estabelecidos no período fundacional. As loterias permaneceriam como principal mecanismo de financiamento até a República; a censura, em diferentes configurações, atravessaria todo o Império e adentraria o século XX. O sonho de uma companhia dramática nacional, estável e subvencionada, seria periodicamente retomado nos debates parlamentares e na imprensa, sem jamais se concretizar plenamente durante o regime monárquico.

O teatro brasileiro nasceu, assim, sob o signo de uma tutela ambígua: protegido e vigiado, fomentado e censurado, celebrado como índice de civilização e temido como potencial foco de subversão. Entre o modelo francês que se invocava e a realidade institucional que se construiu, havia um abismo que o discurso oficial preferia não reconhecer. Compreender essa gênese, com suas promessas não cumpridas e suas estruturas de controle efetivamente implementadas, é indispensável para interpretar os desenvolvimentos posteriores da cena nacional e para reconhecer, nas tensões entre arte e poder que ainda hoje atravessam a vida cultural brasileira, os ecos de um modelo gestado nos primeiros anos do século XIX.

Referências

CARDOSO, Lino de Almeida. O som social: música, poder e sociedade no Brasil (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX). São Paulo: Edição do autor, 2011.

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FARIA, João Roberto (org.). História do teatro brasileiro: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo: Perspectiva; Edições SESC-SP, 2012. v. 1.

PRADO, Décio de Almeida. João Caetano. São Paulo: Perspectiva, 1972.

PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993.

SILVA, Charles Roberto. Teatro para os trópicos: o governo imperial brasileiro e a questão teatral (1822-1889). 2017. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

SOUTTO MAYOR, Mariana França. Por um "teatro decente": transformações do trabalho teatral na capital do vice-reino do Brasil-Rio de Janeiro (1808-1822). Sala Preta, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 129-161, 2025. DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v24i2p129-161.

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